Daniel José
Há 33, parte da Europa ficou ameaçada de se tornar
inabitável após o acidente nuclear da Usina de Chernobyl. O episódio de 25 de
abril de 1986, na região onde hoje fica a Ucrânia, foi retratado recentemente
na série “Chernobyl e o preço da mentira.”.
A série mostra o que acontece em um sistema hierarquizado
quando opiniões técnicas contrariam interesses políticos.
De um lado, os membros do Partido Comunista,
representados por Boris Scherbina, então Vice-Primeiro Ministro da União
Soviética. Do outro lado, os técnicos liderados por Valery Legasov, o físico
nuclear responsável por avaliar os danos do acidente.
Segundo Scherbina, o acidente havia provocado apenas uma
radiação de 3,6 Roentgen (o equivalente a um raio-X). Não havia, portanto,
motivos para se preocupar: a situação era estável e estava sob controle.
Ouvindo a narrativa política, Legasov não se conteve:
“Não! Isso não é verdade. A verdade é que a leitura
máxima do dosador é de 3,6 Roentge. Pelo que vi, este número deve ser muito
maior...”.
Diante do impasse, o que fizeram os membros do Partido
Comunista – aqueles responsáveis por tomar as decisões? Confiaram nos
especialistas da reunião? Buscaram mais informações? Tentaram compreender mais
o ocorrido? Não! Pelo contrário, acreditaram na versão que era conveniente ao
Partido.
O tempo mostrou a verdade. A radioatividade não era 3,6,
mas 15.000 Roentgen, o equivalente a 400 bombas de Hiroshima e Nagasaki juntas.
Uma fumaça de Iodo-131 e Césio-137 se espalhou pelo vento. Menos de dois dias
depois do acidente, a fumaça radioativa havia chegado à Suécia, a 1.100
quilômetros do local da explosão, na cidade em Pripyat.
Chernobyl foi o maior acidente nuclear da história,
classificado como um evento de grau 7 (a classificação máxima). Segundo as
estatísticas da velha URSS, apenas 31 pessoas morreram no acidente, mas a ONU
estimou em 2005 que mais de 4 mil pessoas morreram pela exposição à radiação. A
decisão das autoridades de minimizar o acontecido e não avisar a população para
se autoproteger maximizou a contaminação.
Apesar de Chernobyl ter se passado em 1986, a mentalidade
está presente até hoje.
Inclusive na USP, a principal universidade do país.
A Universidade de Leiden, na Holanda, produz anualmente
um ranking com as instituições que mais produzem pesquisa acadêmica. Segundo
esse ranking, de 973 universidades analisadas, a USP foi a 8ª que mais produziu
artigos. Foram 16.846 artigos entre 2014 e 2017.
Em meio a críticas recentes, a notícia era boa o
suficiente para o alto escalão da USP comemorar. O próprio Jornal da USP fez
uma matéria com o título: “Ranking que avalia produção científica classifica a
USP como a 8ª melhor do mundo.”.
Como recentemente passei a compor o conselho consultivo
da USP – como representante do Poder Legislativo Paulista – senti-me como
Legasov e os técnicos vendo os camaradas soviéticos comemorando o fato de a
radiação ser supostamente 3,6 Roentgen. Trata-se de um autoengano.
Assim como ele, infelizmente tenho que dizer que não há
praticamente motivo algum para se comemorar.
O Ranking Leiden classifica as universidades em todo
mundo pelo volume de publicações acadêmicas. Como a USP está entre as maiores
universidades do mundo em número de professores e alunos, é natural que tenha
mais quantidade de pesquisas do que as outras.
Seria a mesma coisa que dizer que somos quatro vezes mais
prósperos que a Suécia, já que temos um PIB de 2 trilhões de dólares, enquanto
eles possuem um PIB de US$ 500 bilhões. Quem utiliza essa lógica ignora que o
fato de que temos 210 milhões de pessoas e eles, apenas 10 milhões.
Não podemos comparar a USP, que tem 98 mil alunos, com
Stanford, que possui 16 mil.
Temos que avaliar a qualidade da pesquisa, e não apenas a
quantidade.
Vendo o ranking Leiden, me perguntei: qual a porcentagem
das pesquisas está entre as mais relevantes? E quando se faz análise essa
análise, dos mais de 16 mil artigos, apenas 6,2% está entre os 10% melhores em
suas áreas. Utilizando esse critério, a USP cai para 775ª colocada. Conclusão:
a USP produz muitos artigos, mas com pouco impacto no cenário internacional.
Claro que – assim como Legasov – tentei contra-argumentar
com aqueles que me repassaram a notícia de que a USP era a 8ª melhor do mundo
em pesquisa. Mas o que membros do alto escalão fizeram quando viram o Ranking
Leiden? Questionaram? Não.
Fizeram críticas à metodologia?Não! Pelo contrário,
fizeram como os soviéticos em Chernobyl: aplaudiram a verdade que lhes convinha
e fizeram questão de divulgar a informação que lhes favorecia.
Não me entendam mal. Não quero diminuir a USP, que é uma
universidade respeitada, faz parte da história do país e já fez muitas
contribuições relevantes. Pelo contrário, o objetivo é fazê-la melhorar cada
vez mais.
Como deputado cuja principal bandeira é a educação,
trabalho diariamente para melhorá-la em todo o país, sobretudo no ensino
superior. Mais que isso, como membro do conselho consultivo da universidade,
quero ver a USP lado a lado com as melhores do mundo.
Porém, como vamos melhorar se aqueles que deveriam
reavaliar constantemente os rumos da universidade simplesmente distorcem a
realidade?
Como vamos melhorar se buscamos apenas mentiras
confortantes e escondemos as verdades inconvenientes? Com certeza não é isso
que se faz em Harvard, Oxford, Yale e tantas outras instituições de excelência.
No auge de Guerra Fria, os soviéticos negavam qualquer
narrativa que fosse enfraquecê-los para não revelar fraqueza ao Ocidente. Mas
em Chernobyl e na vida real, a mentira tem seu preço, e as coisas só pioram
quando escondemos os fatos.
No último episódio da série, Legasov pergunta aos
presentes no julgamento final: “Qual o preço da mentira”? Cada mentira que
contamos gera uma dívida com a verdade. Um dia, esta conta deverá ser paga.
A verdade não pode ser apenas um mero detalhe. Uma
cultura de mentiras deixa um rastro de destruição. A USP precisa se livrar do
seu complexo de Chernobyl.
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