Por Patrick Cruz, 09/10/2015 às 05h00
Um dos homens mais poderosos da República na atualidade é
Eduardo Cunha (PMDB-RJ), presidente da Câmara dos Deputados. Equilibrando-se
entre a descoberta de contas bancárias na Suíça atribuídas a ele e seus
familiares e o desejo de levar o governo à lona, em suas mãos poderá estar, por
exemplo, o andamento de um eventual processo de impeachment da presidente Dilma
Rousseff. Cunha é evangélico. Em 2016, o deputado Marco Feliciano (PSC-SP) deve
ser um dos candidatos à Prefeitura de São Paulo, a maior metrópole do país.
Feliciano é evangélico. Nos dias 22 e 23, mais de 2 mil políticos evangélicos
deverão se reunir em Brasília para discutir sua atuação na vida pública, no
primeiro congresso do gênero organizado pela Frente Parlamentar Evangélica.
Todos são irmãos de fé, mas será que todos compartilham a mesma visão de mundo
e do papel da religião?
Não é bem assim. O crescimento da população evangélica no
país - e também da chamada bancada evangélica no Congresso - tem sido tratado
por alguns analistas políticos e sociólogos muitas vezes como sinônimo de
ascensão de um Brasil mais conservador. Mas, em paralelo, ascendem vozes que mostram:
muitos não se sentem representados por essa ala. São líderes religiosos,
pensadores e fiéis que, organizados em grupos, defendem bandeiras de tolerância
social, política e religiosa, muitas vezes não associadas a esse grupo.
"Eu não votei nessas pessoas que dizem falar em nome dos evangélicos. Não
penso como eles, e muita gente do meio evangélico também não", diz Clemir
Fernandes, pastor da Igreja Batista e sociólogo. "O mundo evangélico tem
visões muito mais diversas do que essa agenda exclusivamente moralista."
Antônio Carlos Costa, pastor da Igreja Presbiteriana e
presidente da organização não governamental Rio de Paz - conhecida por seus
atos contra os assassinatos no país -, é outro representante desse segmento que
começa a marcar uma posição distinta. "É muito evidente que boa parte da
sociedade vê os evangélicos como uma coisa só, mas nem todos seguem esses
verdadeiros 'coronéis da fé', que se dizem representantes de todos os
evangélicos", diz. Costa foi um dos pastores que, em 2013, assinaram um
manifesto contra a polêmica indicação de Marco Feliciano - notoriamente
contrário ao casamento de pessoas do mesmo sexo - para a presidência da
Comissão de Direitos Humanos da Câmara.
Uma das máximas sobre a relação dos evangélicos com a
política é "irmão vota em irmão", expressão que batizou um dos livros
do pesquisador evangélico Josué Sylvestre, ainda nos anos 80. Hoje, a chamada
bancada evangélica tem 74 deputados federais e três senadores, de acordo com o
Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). Mas não
necessariamente esses 77 parlamentares falam em nome de seus 45 milhões de
evangélicos.
Ronilso Pacheco, evangélico e estudante de teologia da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), é uma das pessoas
envolvidas no momento na estruturação do Entre Nós, plataforma que pretende
mapear iniciativas sociais e políticas capitaneadas por evangélicos. A ideia é
identificar os trabalhos com visão menos conservadora, mais
"progressista", da sociedade - e, com isso, ajudar a diminuir o
estigma que, segundo Pacheco e outros apoiadores da iniciativa, coloca
evangélicos como essencialmente moralistas.
"Inicialmente, queremos mapear essas iniciativas.
Muitas vezes são pequenos grupos, ou mesmo pessoas trabalhando sozinhas, mas
sempre com o respeito às diferenças e ao diálogo - e são pessoas que não são
vistas", afirma Pacheco. "No longo prazo, queremos ajudar a mudar a
visão que se tem dos evangélicos, a mostrar a diversidade de opiniões [nesse
grupo]." Entre os planos do Entre Nós está a organização de seminário para
discutir como os evangélicos são retratados na imprensa.
Cunha, da ala mais "conservadora" dos
evangélicos: a fiéis que dizem não ser representados por essa ala incomoda o
uso de conteúdo religioso na elaboração de leis
O crescimento das igrejas evangélicas no Brasil é um dos
grandes fenômenos sociais do país nas últimas décadas. Em apenas 30 anos, entre
1980 e 2010, os adeptos passaram de 6,6% para 22,2% da população, segundo o
IBGE. Ainda assim, os estudos sobre o tema não crescem na mesma proporção - e,
com isso, levantamentos que exponham as nuances dos diferentes perfis de
evangélicos são escassos. "Os evangélicos são heterogêneos, como
heterogênea é a sociedade brasileira", observa Ricardo Mariano, professor
do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP).
A ala mais "conservadora" dos evangélicos,
representada por deputados como Eduardo Cunha e Marco Feliciano, é mais
estridente. Sobram a eles o palanque dado pelos cargos que ocupam e a desenvoltura
de políticos experientes. Aos eleitores evangélicos que dizem não se sentir
representados por essa ala incomoda não apenas a oposição a temas tidos por
esses congressistas como contrários à fé que professam, mas o próprio uso de
conteúdo religioso na elaboração de projetos e leis.
O texto original da Proposta de Emenda à Constituição
(PEC) que trata da maioridade penal é um exemplo disso. A PEC data de 1993 e
foi elaborada pelo ex-deputado federal Benedito Domingos (PP-DF), pastor da
Assembleia de Deus. Na justificativa para o projeto, Domingos citou passagens
da "Bíblia" e três de seus personagens, Salomão, Davi e o profeta
Ezequiel. Não havia estatísticas no texto que justificou a PEC.
Já entre alguns "progressistas" - em
autocrítica feita em depoimentos colhidos pelo Valor -, a projeção política
nunca foi uma prioridade. Está aí uma das origens, acreditam, do paralelo feito
por muitos observadores políticos entre conservadorismo e a atuação política
dos evangélicos: apenas uma ala tomou os palanques; a outra preferiu trabalhar
um pouco mais em silêncio. Também está aí a força dos ditos conservadores, a
despeito de mais vozes evangélicas se manifestarem como antagonistas: entre
eles, há um esforço constante por exposição - e por exposição que mencione o
fato de serem evangélicos.
Se há um crescente número de vozes que dizem não se
sentir representadas por parte da bancada evangélica, fica evidente que, entre
os evangélicos, as visões de mundo, políticas e sociais, são diversas como em
qualquer outro estrato da população brasileira. Em 2002, a cientista política
Simone Bohn, doutora em ciências sociais pela USP, publicou o artigo
"Evangélicos no Brasil: perfil socioeconômico, afinidades ideológicas e
determinantes do comportamento eleitoral". A pesquisadora mostrou que
39,6% dos católicos entrevistados eram contra o aborto em qualquer situação.
Entre os evangélicos, a oposição era um pouco maior, de 46,7%. Simone registrou
que os evangélicos eram "mais tradicionalistas" no tema, mas
ressaltou: "É fundamental perceber que a postura antiaborto é comum a
todos os segmentos religiosos".
A diferença mais significativa apareceu na pergunta sobre
homossexualidade. Entre os evangélicos, 15,7% disseram considerar que as
pessoas são livres para fazer suas escolhas sexuais. O percentual foi quase o
dobro entre os católicos (31%). Ao mencionar a pesquisa, o professor Mariano
complementa: "Nesse tema, os evangélicos apareceram como mais
conservadores que a média, o que não quer dizer que os outros também não tenham
se mostrado conservadores".
É verdade que, se faltam estudos que evidenciem os
diferentes perfis de evangélicos, também falta que os grupos dissonantes se
façam ouvir. "Há políticos que se manifestam como representantes do
'Brasil cristão', mas não falam em nome de todos. Apenas uma parte dos
evangélicos concorda com eles", diz Rodrigo Franklin de Sousa, evangélico
e professor do programa de pós-graduação em ciências da religião da
Universidade Presbiteriana Mackenzie. "Os que discordam se calam, preferem
se abster da política. Talvez seja o caso de uma mudança de postura."
Nem toda ação política exige voto na urna. Em 2002,
membros e ex-membros da Aliança Bíblica Universitária do Brasil (Abub) criaram
a Rede Fale, mais uma iniciativa identificada com evangélicos que não se sentem
representados pela chamada bancada evangélica. O grupo tem ramificações em pelo
menos 13 Estados e realiza campanhas de conscientização, debates e petições
sobre temas que vão de igualdade racial a justiça no comércio internacional. O Fale
também já se manifestou oficialmente em debates públicos, como o ocorrido na
eleição para a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, em 2013.
"Nenhuma liderança religiosa ou política pode ser
porta-voz dos evangélicos. Fazemos parte de um segmento extremamente
plural", disse, por e-mail, a coordenação nacional do Fale - o grupo
preferiu não destacar nenhum integrante em particular nesta reportagem. A
coordenação reconhece que, em parte da comunidade evangélica, o "irmão
vota em irmão" ainda está presente. "Algumas igrejas ainda são
tratadas como curral [eleitoral]", afirma o grupo.
"A fé não pode ser tratada como moeda para se
conseguir vantagens materiais ou simbólicas. É lamentável que a sede de poder
seja ainda hoje uma tentação para muitas lideranças cristãs." As vantagens
materiais, diz a coordenação, incluem a doação de terrenos para a construção de
novos templos.
As igrejas evangélicas têm origem na Reforma Protestante,
como ficou conhecida a cisão entre a Igreja Católica e o teólogo alemão
Martinho Lutero, ocorrida em 1517. Lutero insurgiu-se contra o comércio de
indulgências, a compra e venda de perdões pelos pecados que havia se tornado
habitual nos meios católicos. Ao ler com atenção as "Escrituras",
chamou a atenção de Lutero o texto da carta do apóstolo Paulo aos romanos, em
que este afirma que a "salvação vem por meio da fé". Isso contrariava
a doutrina católica de que a salvação era um resultado das boas obras, o que
por sua vez fortalecia as vendas de indulgências. Ao reler a "Bíblia"
e se insurgir contra o comércio da fé, Lutero valorizou um princípio hoje
basilar para os protestantes - o do direito à livre interpretação dos textos
bíblicos.
"A livre interpretação, que é a força do
protestantismo, acabou desvirtuada", diz Antônio Carlos Costa, da Rio de
Paz. "Já se usou a 'Bíblia' para justificar a segregação racial nos
Estados Unidos e o apartheid na África do Sul." Esse desvirtuamento ajudou
a cunhar a frase "a Bíblia é a mãe de todas as heresias", creditada
ao teólogo protestante Júlio Andrade Ferreira, morto em 2001. Mas é também a
livre interpretação que reitera as diferenças de pensamento que há entre os
diferentes grupos de evangélicos no Brasil.
São três grandes denominações protestantes. As
tradicionais - ou históricas -, conjunto que inclui batistas (a maior dessa
ramificação no Brasil, com 3,7 milhões de pessoas), luteranos e presbiterianos,
surgiram na Reforma Protestante ou logo depois dela. As pentecostais - entre as
quais está a Assembleia de Deus, maior igreja evangélica do país, com mais de
12 milhões de fiéis -, nascidas nos Estados Unidos no início do século XX,
reconhecem as manifestações do Espírito Santo. O terceiro grupo, surgido a partir
da década de 60, é o das neopentecostais. Elas se diferem das pentecostais por
uma maior liberdade de costumes e pela ênfase dada à teologia da prosperidade,
segundo a qual qualquer desejo pode ser alcançado por meio da fé. Desse grupo,
no Brasil, a maior é a Universal do Reino de Deus, com 1,8 milhão de fiéis.
Essa perspectiva histórica ajuda a explicar as diferentes
visões de mundo que há também entre os evangélicos - e por que há segmentos com
mais representação política que outros. Até o início dos anos 80, era incomum
que os evangélicos entrassem na política. O quadro começou a mudar na segunda
metade da década. Disseminou-se em meios evangélicos - em particular, na
Assembleia de Deus - que a Assembleia Constituinte, que seria instalada em
1986, votaria leis que dariam mais benesses à Igreja Católica - e, por
oposição, que tolheriam liberdades dos evangélicos.
Isso uniu parcela grande dos fiéis em torno da ideia de
que era necessário ter representantes para defender seus direitos. O receio
virou combustível para o crescimento das igrejas, em particular as
pentecostais. "Desde o início do protestantismo, quanto mais os
evangélicos apanham, quanto mais se sentem perseguidos, mais eles
crescem", comenta Lidice Meyer Pinto Ribeiro, professora da pós-graduação
em ciências da religião da Mackenzie.
O temor que uniu parte dos evangélicos em torno da ideia
de que era necessário ter representantes na política mostrou resultado nas
urnas. Na eleição para a legislatura 1983-1986, 12 deputados federais evangélicos
saíram vencedores, sendo 2 pentecostais. Na seguinte, para o período 1987-1990,
foram 32 deputados - com 18 pentecostais, e, desses, 13 da Assembleia de Deus.
Houve novo clima de receio na eleição presidencial de
1989. Em seus discursos, o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva expunha o
plano de instalar um "socialismo democrático" no Brasil. Na era
pré-queda do Muro de Berlim, com o histórico de supressão das liberdades
religiosas na União Soviética e nos países sob sua influência, Lula era visto
como "comunista" - e, como tal, supunha-se que também cercearia o
direito de culto dos crentes. Mais uma vez grande parte dos evangélicos se uniu
em uma causa política para assegurar a manifestação de sua fé.
"No segundo turno da eleição de 89, houve movimento
anti-Lula entre os evangélicos", diz o cientista político Cesar Romero
Jacob, professor da PUC-Rio. "E não deu outra: onde tinha mais igreja
evangélica, o [Fernando] Collor [hoje senador pelo PTB-AL] levou mais
votos." A rejeição a Lula entre os evangélicos ocorreu também nas eleições
presidenciais de 1994 e 1998, afirma o professor. Ambas foram vencidas por
Fernando Henrique Cardoso.
Jacob mapeou os resultados da eleição presidencial de
2002, na qual o evangélico Anthony Garotinho recebeu 15 milhões de votos e
ficou em terceiro lugar. Essa eleição é um dos grandes exemplos de que a máxima
"irmão vota em irmão" segue válida, raciocina o professor. Garotinho
recebeu mais votos onde havia mais evangélicos pentecostais e repetidoras da
Rede Record, controlada pelo bispo Edir Macedo, fundador da Igreja Universal.
Nas eleições para a Prefeitura do Rio, em 2004, e para o governo fluminense, em
2006, o também evangélico Marcelo Crivella - sobrinho de Macedo - teve grandes
votações em áreas com forte concentração evangélica, segundo o levantamento de
Jacob.
Doze anos depois, outro presidenciável evangélico não
teve o mesmo sucesso. Pastor Everaldo (PSC) terminou a eleição de 2014 com 780
mil votos. Além de Everaldo não ter governado nenhum Estado, entre uma eleição
e outra, pelas igrejas do país, o mantra que fortaleceu Garotinho,
ex-governador do Rio, foi substituído pelo voto em "homens de bem",
sem especificar o credo. O ponto de virada pode ter sido a CPI dos
Sanguessugas, que investigou a máfia das ambulâncias.
Segundo o relatório da CPI, dos R$ 9 milhões pagos em
suborno para que parlamentares direcionassem emendas para a compra de
ambulâncias, 58% foram para os bolsos de evangélicos. Foi assim que, dos 50
deputados evangélicos que tentaram a reeleição em 2006, 32 foram rejeitados nas
urnas. Dezoito se reelegeram, e os demais da bancada eram novatos. A
legislatura 2007-2010 começou com 27 deputados federais a menos que a anterior.
Essa retrospectiva relativiza a ideia de que, se há
alguns evangélicos no Congresso, eles falam em nome de todos - e uma ideia que
não deixa de ser alimentada por parte desses congressistas. "Se muitas
vezes eles [membros da bancada evangélica] discordam entre eles mesmos, imagine
se há alguma chance de unanimidade", diz o pastor Clemir Fernandes.
"É impossível falar em nome de todos os evangélicos."
Enxergar matizes nesse estrato do eleitorado e do
Congresso exige um amadurecimento político do país que o maniqueísmo atual não
deixa entrever. Mas as evoluções raramente ocorrem na velocidade que se deseja
delas. "Quando vemos um deputado com um discurso bastante conservador, e o
deputado é evangélico, o discurso é conservador, mas não necessariamente
evangélico", diz Rodrigo de Sousa, da Mackenzie.
Entre os matizes, há o do deputado João Campos (PSDB-GO),
presidente da Frente Parlamentar Evangélica - e um dos nomes que vêm à mente
dos evangélicos que dizem não se sentir representados pela bancada que se
identifica como tal. Nos dias 22 e 23, Campos será um dos anfitriões do 1º
Congresso de Agentes Políticos Evangélicos do Brasil (Capeb). Segundo ele, o
evento terá como foco a capacitação dos parlamentares, deputados estaduais,
prefeitos e vereadores. O deputado espera pelo menos 2 mil pessoas no encontro.
Campos foi o autor do projeto que ficou conhecido como
"cura gay". O texto do projeto sugeria a suspensão de artigos de uma
resolução do Conselho Federal de Psicologia que impedem que profissionais da
área participem de terapias para tentar alterar a orientação sexual de pacientes.
Um dos principais palestrantes do Capeb será o pastor Silas Malafaia, voz ativa
da ala mais conservadora dos evangélicos - que, de tão onipresente no mundo
político, não raro é chamado de "deputado". "Qualquer
interessado vai poder participar do congresso, mesmo não sendo
evangélico", afirma o tucano. Outro dos palestrantes será Eduardo Cunha -
se nada mudar no cenário político até lá.
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