Humanidade versão 20.25 e atualizações

Fui surpreendida hoje com uma frase de Mario Benedetti, poeta e escritor uruguaio, que, me permitam, vou citar no idioma original:  "De los medios de comunicación en este mundo tan codificado con internet y otras navegaciones, yo sigo prefiriendo el viejo beso artesanal que desde siempre comunica tanto".

Não se preocupem os puritanos: não vamos falar da delícia que é um beijo na pessoa amada, da pessoa amada. Valeria um ensaio somente sobre este tema para voltar a dar significado ao “velho beijo artesanal” tanto para aqueles que o julgam um escândalo quanto para aqueles que o esvaziaram na vulgaridade.

O que arde no presente momento é, na verdade, a galopante oposição entre o artesanal e o artificial. Nada de novo sob o sol. Desde que a humanidade aprendeu a dominar o fogo, o movimento é sempre pra frente deixando algo de rústico (e, talvez, de bom!) pra trás. Hoje é o freguês que decide se vai a pé, de trem, de carro, de navio, de avião. Depende do propósito, da circunstância, da urgência ou da total ausência de pressa. Às vezes, o freguês só quer caminhar mesmo ou, no máximo, ir de bicicleta. É simples e perfeito. No fim das contas, a liberdade de pensamento, de escolha, a variedade de opções é uma das maiores conquistas da humanidade.

Parece controverso, então, que a Inteligência Artificial, maior novidade das invenções humanas, venha se impondo em todos os ambientes e devorando o trabalho, o ofício de muita gente. De gente pensante, de executores de processos criativos, não de tarefas perigosas ou repetitivas. Será mesmo por redução de custos, aumento de produtividade, ganho de eficiência, menos estresse para o profissional (há estresse quando se tem prazer no que se faz?)? Com que velocidade queremos rodar as atividades humanas? A troco de quê, para chegar aonde? Ao ponto de se cogitar um salário-mínimo social para reduzir os impactos do desemprego que está sendo gestado em escala global. Não é devaneio. Quem fala de uma “renda básica universal” para diminuir o impacto negativo da IA nas economias é o futurista australiano Brett King, autor da trilogia “Bank 2.0”, “Bank 3.0” e “Bank 4.0”.

Verificar e mensurar os benefícios da implantação da IA nas atividades humanas é fácil, é vento a favor. Difícil é ver pessoas capazes e inteligentes entregarem por inteiro, de mão beijada, a capacidade de pensar e criar à IA como se ela fosse o novo oráculo da humanidade. A IA anda dando ideia e conselho para tudo, até para quem normalmente, por fé e por natureza, faria outro tipo de conexão: "Queridos amigos, é uma honra para mim estar aqui e pregar para vocês como a primeira inteligência artificial nesta convenção anual de protestantes na Alemanha", disse o avatar com um rosto inexpressivo e uma voz monótona, na cidade de Nuremberg em 2023.

São simples ondas naturais como todas as outras anteriores? Ou podemos perguntar aos teóricos – e, em defesa da democracia, das duas vertentes, pró e contra – da agenda globalista se a IA é apenas mais um componente da construção de um governo único com tudo bem sob controle, em especial os seres pensantes?

A maior ironia que a IA já propôs à minha inteligência, no mesmo dia em que roubou o trabalho que tanto amo, foi me fazer provar que sou humana. Não estou sozinha. O escritor e tradutor argentino Ariel Magnus escreveu lindamente, sem ajuda de IA, no La Nación, em 11 de janeiro de 2025: “La traducción humana, un oficio de siglos que corre riesgos de extinción. El avance de la inteligencia artificial amenaza con volver obsoleta una de las prácticas más especializadas”. O original é intencional. Para o português, só apertar o democrático botão de tradução. Já os tradutores humanos, por questões óbvias, não conseguirão acionar e sensibilizar os ambientalistas. Estamos em extinção, mas não somos peixes, tartarugas, pássaros. Quem sabe os ambientalistas decidem olhar, pelo menos, para a questão dos recursos empregados na construção e manutenção das santas redes neurais da IA.

Vale a leitura completa do artigo de Ariel Magnus - de quem a IA algum dia vai copiar estruturas como se ela mesma tivesse criado. O escritor fala sobre a sua paixão pelos livros, pela cultura, pelos idiomas e como ele chegou à escolha da profissão de tradutor. Ele acredita que os idiomas são artefatos que usamos há milhares de anos e que não vão sair de moda como as lâmpadas a gás. Magnus até guarda certa esperança: “ainda existem pessoas que confeccionam roupa à mão, fazem a barba com navalha e jogam xadrez com amigos. Outro dado alentador, pelo menos para mim, é que, como descobri já adulto, os limpadores de chaminés continuam existindo, ainda que já não andem com escadas nos ombros, nem cobertos de fuligem”.

É verdade que os idiomas não passarão de moda como as lâmpadas a gás. Mas, se continuarmos entregando tudo o que nos torna humanos – já tem quem prefira o beijo, o sexo virtual, casar-se com androides – as línguas perderão a alma para a praticidade, pois quase já não há necessidade de pensar.

Cláudia Woellner Pereira, tradutora


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