Artigo, Tito Guarniere - Vós amais o que é fácil
“Vós amais o que é fácil”, reclama a certa altura do seu
famoso poema “Cântico Negro”, o poeta português José Régio. Essas palavras
sempre me vêm à memória quando vejo quantas pessoas, mesmo nas situações mais
complexas, têm uma explicação na ponta da língua, um juízo de valor pronto, uma
sentença final e definitiva.
Para os que amam o fácil, os fatos são absolutos, não
contêm mediações, não comportam abordagem diversa ou versão que não esteja
contida no repertório - em geral estreito - das suas próprias convicções. Os
que amam o fácil leem a orelha dos livros, as manchetes dos jornais, quando
muito o "lead" da matéria. É quanto lhes basta para, de toda sorte,
terem confirmadas as suas impressões e opiniões.
Contextos mais amplos não lhes servem, nem mesmo para
confirmar as suas teorias como define a escritora Anaïs Nin: "os fatos não
são como são, são como nós somos". Não querem ter direito apenas à
opinião, mas também aos fatos. Nas suas cabecinhas há um mundo sem nuances, que
distingue desde logo, sem peias nem meias, o que é virtude e o que chafurda no
vício, quem é o vilão e quem é mocinho, e de que lado está, peremptoriamente, o
bem e o mal.
E assim, sem mais perguntas e delongas, entram de sola no
debate, com suas verdades incontrastáveis. Como raciocinam pouco, enveredam
para a ofensa, a desqualificação de quem ousa contrariar seus arraigados
valores, sua irretocável visão de mundo. E o fazem, via de regra, sem ao menos
tangenciar o arrazoado que não apreciam. Resolutos, acham dispensável e
cansativo refutar razões e argumentos.
No debate, costumam atribuir aos adversários (de suas
posições e ideias) intenções subalternas, mesmo que essa inculpação dos outros
não guarde nenhuma consonância com a realidade.
Nas redes sociais, a tribo dos que amam o fácil é
amplamente dominante. E assim, plenos de certeza arrogante, quando travam um
diálogo é de surdos, descambam para a gritaria insana, onde ninguém se entende
porque o objetivo é esse mesmo: todos só querem dar conta das suas certezas e
ninguém dá o braço a torcer. Mas não há nenhum pejo de torcer os fatos, nas
vezes em que eles não se encaixam com perfeição nos seus moldes e modelos.
Os que amam o fácil não estão só nas redes sociais. Estão
em todos os lugares: nas redações de jornais e tevês, em sites inteiros, em
dúzias de articulistas, que observam os eventos do dia ou da semana, sempre com
o mesmo olhar, as mesmas lentes. Nada, rigorosamente nada, os afasta do ponto
de vista que abraçaram. E qualquer desvio que possa fazer sombra à versão
escolhida, é imediatamente repudiada, impugnada, ridicularizada. Ao final, de
toda forma e jeito, há que prevalecer o cânone religioso, o dogma, a inabalável
convicção.
Como direcionam a outrem a culpa das mazelas da
conjuntura e dos males do país, como não cogitam de que poderia haver falta ou
exagero no que defendem, um ponto a flexionar ou um aspecto a esclarecer, como
os adversários em toda circunstância estão carentes de razão, mal sabem que na
barafunda em que estamos metidos, eles também são parte, eles também têm sua
parcela de culpa.
titoguarniere@terra.com.br
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