Artigo, general Luiz Eduardo da Rocha Paiva - Ucrânia: uma crise onde não há anjos e nem demônios

[Extrato de artigo escrito em 2014 e publicado na revista A Defesa Nacional, nº 826, 1º quadrimestre de 

2015 - https://www.calameo.com/books/00348586430d9f4d7647a] 

General da Reserva Luiz Eduardo Rocha Paiva  

A crise na Ucrânia, agravada no final de 2013, é continuação do jogo de poder pela preeminência na Europa Oriental, que contrapõe EUA e União Europeia (UE), leia-se OTAN, à Rússia após a Guerra Fria. Não envolve apenas interesses econômicos, haja vista a relevância estratégica de áreas terrestres e marítimas para o controle político-militar da região. 

Na Ucrânia, sem julgar o mérito do processo usado e a clara ingerência dos EUA e da UE, o presidente Yanukovich foi deposto por uma decisão interna. À luz do Direito Internacional, a Rússia violou a soberania ucraniana ao coagi-la na anexação da Crimeia, mesmo por plebiscito, e ao estimular o movimento separatista no leste daquele país, onde há uma grande população russa. Mas a questão não pode ser analisada com foco apenas no Direito Internacional. A crise mostrou mais uma vez que, se o interesse for vital, os poderosos imporão sua vontade, caso tenham liberdade de ação, isto é, na ausência de um poder ou aliança capaz de dissuadi-los. 

Após a queda da URSS, os EUA e seus aliados lançaram-se sobre a Europa Oriental e os Países Bálticos, nesses últimos debruçando-se sobre as fronteiras de uma debilitada Rússia, a cerca de 900 km de Moscou. Do antigo bolsão protetor restaram, como simpáticos ou ligados a Moscou ou, pelo menos, não alinhados a antigos inimigos, apenas a Bielorrússia, a Ucrânia e a Moldávia. Os EUA tentam estabelecer o chamado Escudo de Mísseis na região há muito tempo, sob o risível argumento de ser para defesa contra um eventual ataque do Irã.  É uma ameaça inaceitável para os russos. Nesse contexto, a Ucrânia, região de histórico interesse e influência da Rússia, decidiu associar-se à UE num acordo cujo futuro tende a ser a absorção do país pela OTAN, tal qual aconteceu com a antiga Cortina de Ferro e os Países Bálticos. 

Ao longo da história, o núcleo político da Rússia tem sido invadido por vários povos e nações, pois a hidrografia e, principalmente, a permeabilidade do relevo – a oeste (entre os Cárpatos e o Mar Báltico), ao sul (do Mar Negro para o norte e o leste) e entre o Mar Cáspio e os Urais (passagem da Ásia) – não oferecem barreiras de vulto, máxime diante da moderna tecnologia militar. Com a Ucrânia incorporada à OTAN, a aliança ficará apenas a cerca de 800 km de Moscou, também pelo sul, e à mesma distância do Mar Cáspio. Diante de tão grave ameaça ao núcleo do poder russo e de bloqueio do vital suprimento de petróleo e gás do Cáucaso, o que faria Obama no lugar de Putin? 

Ainda lembrando a história, em 1961 os EUA apoiaram a invasão da Baía dos Porcos para derrubar Fidel Castro . Diante da violação da soberania cubana, Fidel tinha direito de buscar a proteção da URSS, que a ofereceu em troca da instalação de mísseis com ogivas nucleares na ilha. A ameaça direta daqueles mísseis ao seu território e a maior presença militar soviética em sua área de influência também eram inaceitáveis para os EUA. A reação veio com um ato de guerra – o bloqueio naval de Cuba – com o nome fantasioso de quarentena, violando a soberania cubana mais uma vez.  A URSS retirou os mísseis com a promessa dos EUA de jamais invadirem Cuba e de também retirarem os seus da Turquia.  

A URSS tinha consciência da mútua destruição consequente de um conflito nuclear, portanto, algo impensável. Por outro lado, sabia que seria derrotada num conflito convencional longe de seu centro de poder e em área marítima dominada pela armada mais poderosa do mundo.   

Hoje, os EUA também sabem do custo inaceitável de um conflito predominantemente terrestre e aéreo nas distantes estepes russas, próximo ao núcleo de poder do oponente. A vitória seria incerta e o resultado não seria compensador, além de enfraquecê-los diante da China, sua maior rival.   

Nos dois casos, a segurança da potência ameaçada e o custo-benefício prevaleceram sobre o Direito Internacional, inclusive o de soberania. Qual o respaldo moral para satanizar o líder russo? Como reagiria o Brasil se uma potência antagônica fizesse uso militar do território de um vizinho, podendo a partir dele causar danos ou invadir o nosso País? 

Além de acordos econômicos, o Brasil tem outros de cooperação militar com a Rússia e a 

Ucrânia. Com a primeira, parceira no BRICS, eles envolvem nanotecnologia, defesa 

  

antiaérea e cibernética. Com a Ucrânia, temos um acordo na área científico-tecnológica envolvendo a Base de Lançamento de Foguetes de Alcântara.   

A posição a adotar é matéria para artigo específico, embora um detalhe deva ser levado em alta conta desde já. No Brasil, desde 1991, governos sem visão estratégica e reféns do peso eleitoral de formadores de opinião tomam decisões sob pressão internacional e criam condições objetivas para a limitação da soberania na Amazônia. A ingerência políticopartidária no Ministério das Relações Exteriores enfraqueceu o Itamaraty como vanguarda da defesa nacional. Em algumas décadas, mantidas a segregação e a desnacionalização da crescente população indígena brasileira, liderada por ONGs ligadas a cobiçosas potências globais, será pleiteada a criação de nações indígenas soberanas, podendo ser por meio de plebiscito semelhante ao sucedido na Crimeia. Como de praxe, haverá prévia satanização do Brasil, com apoio externo e interno, para embasar moralmente a ingerência internacional. Por isso, o Brasil jamais poderá apoiar a Rússia na anexação da Crimeia, embora deva, também, reprovar o expansionismo político-militar da OTAN, que ameaça a segurança russa e põe em risco a paz na região. 

Desperta Brasil! Já passou da hora de lembrar que: o direito é filho do poder; entre outros males, estar desarmado significa ser desprezível (Maquiavel); e não se pode ser pacífico sem ser forte (Barão do Rio Branco). Crises não surpreendem lideranças responsáveis e sociedades esclarecidas, pois são conscientes que elas um dia virão e que defesa não se improvisa. Infelizmente não é o caso do Brasil, único responsável pelo próprio futuro. 


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