Artigo, Chanceler Ernesto Araújo, Diário do Poder - Pro patre


A matéria da Folha de São Paulo de 12/2 intitulada “Procurador-geral, pai do chanceler Ernesto Araújo dificultou extradição de nazista” me dá a oportunidade de falar da memória de meu pai, Henrique Fonseca de Araújo, que, se fosse vivo, estaria completando 106 anos justamente hoje, 16 de fevereiro.
Com apenas 17 anos meu pai juntou-se às tropas gaúchas na Revolução de 30, para derrubar o regime oligárquico e retrógrado da República Velha. Pouco depois, ao ver o regime de Getúlio Vargas enveredar para a ditadura, rompeu com essa linha e tornou-se um antigetulista pelo resto da vida. Foi sempre um antifascista (opondo-se ao Estado Novo e ao integralismo) e um anticomunista. Fez carreira no Ministério Público, que interrompeu em 1946 para ser Deputado Estadual no RS por quatro mandatos seguidos, pelo Partido Libertador, tornando-se adversário ferrenho, na Assembleia estadual, de figuras nefastas da política brasileira, como Leonel Brizola e João Goulart. Vendo que o Brasil rumava para o abismo de uma ditadura comunista ao estilo cubano, apoiou a Revolução de 1964 na primeira hora e, apesar de civil, apresentou-se num quartel do interior do RS para pegar em armas contra Brizola e em favor do movimento de 31 de março, no momento em que se acreditava que haveria uma guerra civil, felizmente evitada. Acreditou que o caminho para a democracia e a liberdade no Brasil passava pela luta contra a subversão comunista, ao mesmo tempo em que sempre defendeu a manutenção de instituições republicanas ao longo do regime militar.
Em 1975 foi nomeado Procurador-Geral da República e ao longo dos quatro anos seguintes promoveu a independência do Ministério Público, ao mesmo tempo em que defendia a União nos Tribunais Superiores, pois à época ainda não existia a Advocacia Geral da União, cujas funções eram exercidas pelo PGR. Propugnou sempre pela legalidade e respeito às normas vigentes – o que contribuiu muito para que o Brasil tivesse um ordenamento jurídico estável nesse período, de forma tão diversa de regimes autoritários aos quais erroneamente se compara o regime de 1964. Nesse quadro foi que emitiu o parecer de que trata a matéria da Folha que, conforme se depreende da própria matéria, não visou a defender um foragido nazista, e sim o estado de direito, pois o que apontava eram as insuficiências processuais no pedido de extradição, sem qualquer contestação dos crimes cometidos pelo acusado.
Meu pai foi a favor da abertura iniciada por Geisel. Mais tarde, participamos juntos de passeatas pelas Diretas Já. Era um espírito independente, livre, destemido, às vezes inocente na sua fé no futuro imenso do Brasil.
Criou-me no conhecimento dos horrores tanto do nazismo quanto do comunismo, como também no respeito à lei, no amor ao próximo e no amor à pátria, no apego ao trabalho e na fé em Jesus Cristo. Cada vez que recito o credo lembro-me de sua voz dizendo “Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro…”
Lembro-me de meu pai contando episódios da II Guerra Mundial como se os tivesse vivido, com um envolvimento íntimo de amante da liberdade, e não apenas acompanhado pelo rádio. Admirava os ingleses, os americanos, evidentemente os pracinhas da FEB e a França Livre de De Gaulle, e dizia sempre “os aliados” isto, “os aliados” aquilo – e essa palavra ganhou para mim uma dimensão de urgência épica, quase mística, e não apenas episódios militares. Até hoje quando o ouço na memória dizendo “os aliados” sindo um arrepio. Queixava-se da decisão de Roosevelt de desembarcar na Normandia e não nos Bálcãs (como queria Churchill para barrar o caminho da União Soviética e chegar à Alemanha pelo leste, ao menos segundo a interpretação dele), lamentando esse erro e a consequente dominação comunista da Europa Oriental como se fosse uma tragédia pessoal.
Lembro-me de vê-lo quase chorar de emoção certa vez quando assistíamos o filme Casablanca,na cena onde os frequentadores do bar Rick’s começam a cantar a Marselhesa, calando os oficiais alemães que cantavam canções nazistas. Depois ele me ensinou a cantar eu mesmo toda a Marselhesa, esse “hino guerreiro”, como ele dizia, de um patriotismo universal que também me emociona até hoje com o seu “Amour sacré de la patrie…”
Lembro-me especialmente de uma vez, em 1973, quando eu, após assistir a algum noticiário sobre a Guerra do Yom Kippur, cheguei na sala vibrando com o avanço das tropas egípcias e sírias e anunciei: “estou torcendo pelos árabes”. Meu pai suspirou, sentou-se, puxou-me para perto e disse: “Filho, deixa eu te contar.” Disse-me que Israel era um pequeno e bravo país cercado àquela época de inimigos, um país que lutava pela sua sobrevivência, formado por um povo que havia sofrido as piores coisas ao longo da história. Falou-me um pouco do passado do povo judeu e da criação de Israel como esperança desse povo de finalmente viver em paz. Não me disse para torcer por este ou aquele, apenas me pediu para pensar. Engoli em seco e nunca mais me esqueci.
Na PGR, meu pai atuou contra Lula nos primórdios da carreira dessa figura (considerava que a politização das greves no ABC promovida por Lula era ilegal) e contra Paulo Maluf (ao procurar anular a votação tida como fraudulenta que levou Maluf ao governo de São Paulo pela primeira vez). A Folha poderia examinar e estudar todos os seus milhares de pareceres, discursos, palestras, aulas emanados de mais de seis décadas de vida pública na carreira jurídica, política, acadêmica e jornalística. Creio que aprenderiam muita coisa. Veriam formar-se a figura de um homem de caráter. Eu assinaria embaixo de cada um desses pareceres e discursos, defenderia e defenderei cada linha que ele jamais escreveu, cada palavra que jamais pronunciou, pois sei que todas provinham do mesmo coração cheio de amor e coragem.
Quando eu tinha uns 11 anos, meu pai me deu um quadrinho com o poema “If” de Rudyard Kipling, na tradução de Guilherme de Almeida. Já não sei onde está o quadrinho, mas este é o poema:
Se
Se és capaz de manter tua calma, quando Todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa, De crer em ti quando estão todos duvidando, E para esses no entanto achar uma desculpa;
Se és capaz de esperar sem te desesperares, Ou, enganado, não mentir ao mentiroso, Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares, E não parecer bom demais, nem pretensioso;
Se és capaz de pensar – sem que a isso só te atires, De sonhar – sem fazer dos sonhos teus senhores, Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires, Tratar da mesma forma a esses dois impostores;
Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas, Em armadilhas as verdades que disseste E as coisas por que deste a vida estraçalhadas, E refazê-las com o bem pouco que te reste;
Se és capaz de arriscar numa única parada, Tudo quanto ganhaste em toda a tua vida E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada, Resignado, tornar ao ponto de partida;
De forçar coração, nervos, músculos, tudo, A dar seja o que for que neles ainda existe, E a persistir assim quando, exausto, contudo, Resta a vontade em ti, que ainda te ordena: Persiste!
Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes, E, entre Reis, não perder a naturalidade, E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes, Se a todos podes ser de alguma utilidade,
Se és capaz de dar, segundo por segundo, Ao minuto fatal todo valor e brilho, Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo, E – o que ainda é muito mais – és um Homem, meu filho!

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