Processo mostra que Henrique Araújo, quando era PGR,
opinou pela entrega de sargento acusado de 150 mil mortes e não o contrário, como contou mentirosamente a Folha de S. Paulo.
A matéria é do jornalista Felipe Recondo e foi publicada na edição de ontem do blog do Jota.
Na página 225, volume II, da extradição 356, processo
julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 1979, duas assinaturas apostas dão
sinal verde para a extradição de Gustav Franz Wagner para a Alemanha. Em cima,
a assinatura de Francisco Rezek, procurador da República naquela época a quem
coube avaliar os pedidos de extradição de Wagner. Abaixo, o “aprovo” do
procurador-geral da República, Henrique Fonseca de Araújo, pai do ministro de
Relações Exteriores do governo Bolsonaro, Ernesto Araújo.
Wagner, nascido em Viena, em 1911, foi acusado de matar
“de propósito pessoas” no campo de concentração em Sobibor, na Polônia, no
período de abril de 1942 a 14 de outubro de 1943, em nove ações autônomas, “por
motivos baixos, em parte também com perfídia e crueldade”. Neste período, foram
pelo menos 150 mil pessoas assassinadas em câmeras de gás.
“O acusado é fortemente suspeito de ter tomado parte
decisiva, na qualidade de “Spiess” do campo, no extermínio dos judeus. Ele é
acusado de ter fiscalizado o pessoal do campo, ter exercido, ele próprio, todas
as funções do campo, ter conduzido os doentes ao campo III (campo de extermínio
propriamente dito) para serem fuzilados e, nisso, ter matado com as próprias
mãos, na rampa, bebês e crianças pequenas”.
Wagner era ainda acusado de ter escolhido e mandado ao
“hospital militar” (campo III), onde foram mortos, 20 judeus trabalhadores,
”ter fuzilado o judeu Abraham Boruch, de 17 a 18 anos de idade, com um
revólver, porque o rapaz, devido a um pé machucado, não saía do barrado, ter fuzilado
vários judeus doentes, ter fuzilado um judeu francês, ter enforcado, junto com
outros, dois judeus de Biala-Podlaska, ter assassinado com um pau um judeu, ter
fuzilado o judeu BIskIewic ou Biskoblc, ter fuzilado um judeu de 16 anos de
idade, porque o rapaz tinha tirado duas conservas”.
A gravidade dos crimes atribuídos a Wagner levou quatro
países a pedirem ao Brasil sua extradição: Israel, Polônia, Áustria e Alemanha.
Mas, por distintas razões, Rezek – com a anuência de Henrique Fonseca –
entendeu que Wagner só poderia, juridicamente, ser extraditado para a Alemanha.
Entretanto, a PGR solicitou uma diligência para confirmar
as informações disponíveis no processo. A procuradoria precisava da
documentação referente à condenação de Wagner e de um corréu – Hubert Gomerski
– pelo Tribunal de Júri de Frankfurt. Este tribunal o condenou à prisão
perpétua pelos crimes cometidos.
A informação prestada pelas autoridades alemãs indicavam
que a condenação ocorreu no dia 25 de agosto de 1960. E isso teria interrompido
o prazo de prescrição, no entendimento da Procuradoria. Rezek defendia a
necessidade de que a sentença integral dessa condenação fosse enviada ao Brasil
– e não apenas o sumário, como fora feito.
Se confirmada a informação, diziam os procuradores, a
extradição para a Alemanha estaria autorizada: “Satisfatoriamente esclarecido
esse tópico por via de diligência, entende a Procuradoria Geral inexistente
qualquer obstáculo ao deferimento da extradição de Gustav Franz Wagner à
República Federal da Alemanha”.
Quando essas informações foram juntadas pelas autoridades
alemãs ao processo, a PGR já tinha um novo chefe – Firmino Paz. E a
documentação enviada pelo governo da Alemanha mostrou um erro na primeira
informação. O julgamento de Wagner e Gomerski não ocorreu em 1960, mas sim em
1950. As informações, contudo, indicariam haver outros fatos, como mandados de
prisão de 1967 e 1978, pedidos de abertura de inquérito judicial preliminar.
Portanto, concluiu Firmino Paz, o Supremo poderia autorizar a extradição de Wagner
para a Alemanha, assim como já haviam defendido Rezek e Henrique Fonseca.
O papel do Ministério Público neste caso era apenas
garantir a regularidade do processo. O parecer do procurador-geral da República
não vincula o juiz, não o obriga a seguir este ou aquele caminho. Uma opinião
favorável a este ou a aquele ponto pode ajudar a legitimar uma posição do
relator do processo. Mas não impede os ministros de discordarem da opinião do
MP.
A nomeação de Ernesto Araújo para o governo Bolsonaro
trouxe à tona na imprensa o caso Wagner. Henrique Araújo, pai do chanceler,
ressurge como alguém que, no cargo, “dificultou a extradição de um nazista
responsabilizado por 250 mil mortes entre 1942 e 1943”. Os autos do processo,
entretanto, comportam outra leitura. Rezek e o PGR deram parecer contra a
extradição para três países, como diz o jornal, mas a favor da entrega de
Wagner (acusado de envolvimento na morte de “pelo menos 150 mil pessoas”) para
a Alemanha.
Por que a PGR deu parecer conta a extradição para a Áustria?
“Por entender que, em relação a Sobibor, falta-lhe legítimo interesse: o
extraditando perdera a nacionalidade austríaca e os crimes que lhe são
atribuídos foram cometidos contra judeus, na Polônia.”
Por que a PGR deu parecer conta a extradição para Israel?
“Inexistente à época dos acontecimentos, o Estado de Israel não possuía
território onde se pudessem consumar ilícitos penais. Não possuía súditos
caracterizáveis como autores ou como vítimas de qualquer delito. Não possuía
bens jurídicos eminentes (a vida do Chefe de Estado, a fazenda pública)
suscetíveis de proteção urbi et orbi. Faltavam-lhe, em síntese, todos os
pressupostos alternativos da aplicabilidade da lei penal”. No próprio pedido de
extradição, Israel praticamente reconhecia a impossibilidade da extradição para
o país: “O Governo de Israel vê-se obrigado, por dever moral e histórico, a
fazer tudo que estiver a seu alcance para colocar perante a justiça aqueles que
estiveram ativamente engajados na tentativa de destruir o povo judeu, antes de
estabelecer seu próprio Estado”.
Por que a PGR deu parecer contra a extradição para a
Polônia? Conforme a legislação polonesa, os crimes praticados por Wagner
estariam prescritos. Por isso, não poderia ser autorizada a extradição para
este país.
Quando os processos foram julgados, conjuntamente, o
Supremo concluiu pela impossibilidade da extradição para Israel, Polônia e
Áustria por unanimidade.
Ao analisar o pedido de extradição pela Alemanha, o
relator, ministro Cunha Peixoto, foi acompanhado pelos ministros Djaci Falcão,
Thompson Flores, Leitão de Abreu, Moreira Alves, Soarez Muñoz, Decio Miranda e
Rafael Mayer. Todos defenderam a tese de que os crimes estariam prescritos.
“Em conclusão: os últimos atos imputados ao extraditando
no Campo de Sobibor – e quanto a essa questão não há divergência – datam de 14
de outubro de 1943, quando houve a revolta dos prisioneiros [e o fechamento do
campo de concentração], começando a fluir dessa data, salvo causas de suspensão
ou interrupção, o prazo prescricional, que era de 20 anos nos casos de prisão
perpétua, conforme estabelecia até 1969 o Código Penal alemão”, defendeu o
relator em seu voto. E, desde 1943, não teria havido nenhum fato – ao contrário
do que defendia a PGR – que interrompesse a contagem do prazo prescricional.
Apenas Xavier de Albuquerque e Cordeiro Guerra entenderam
que não haveria prescrição e votavam, portanto, pela extradição, seguindo o
entendimento da Procuradoria-Geral da República.
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