Amigos desde criança, haviam crescido juntos; e suas famílias eram vizinhas desde onde a memória alcançava.
Na verdade, a vida dos dois era uma estranha coincidência. Ambos haviam nascido no mesmo dia, mês e ano, as mães chamavam-se Maria e ambos os pais, por incrível que pareça, Antônio.
Eram muito parecidos, na fisionomia e no temperamento, embora Manoel fosse um tanto mais teimoso. Quem não soubesse da história dos dois, diria que eram irmãos.
Recém saídos da adolescência, Joaquim e Manoel começaram a perceber que a vida no Alentejo daqueles tempos não prometia nenhum futuro. O ímpeto da juventude incutia em ambos a necessidade de sair dali; de trabalhar e progredir de verdade, e não apenas viver da mão para a boca.
Mas para onde ir? Para algum vizinho europeu? Os tempos eram igualmente difíceis por lá. Para as colônias portuguesas em África, não; pobreza e guerra. América, o sonho americano! Não, a passagem era muito cara, e como aprender aquele raio de língua?
E o Brasil? ... Brasil! Por que não? Não era esse um destino lusitano? Brasil.
A despedida, o choro das mães, o olhar perdido e triste dos pais; as malas com as poucas e surradas roupas, as planícies alentejanas ficando para trás; o porto, o navio, e o mar. Ah, o mar.
A chegada na nova terra trazia esperança, e uma vida inteira pela frente.
Joaquim, na travessia, conhecera Maria, uma transmontana trigueira, de sorriso largo. Logo ao chegar, Manoel também conheceu sua Maria; uma italianinha de cabelos negros e beleza meridional; filha de um calabrês, dono da pensão onde, junto com Joaquim, passaria aqueles primeiros tempos.
E começaram a trabalhar juntos em um pequeno empório. E ali permaneceram por meia dúzia de anos, até que o dono, também português, já avançado nos anos, resolveu que já era hora de voltar à terra do vinho verde.
De empregados, Joaquim e Manoel agora eram donos do próprio negócio e, pensavam, do seu destino.
O pequeno empório cresceu, o fruto do trabalho apareceu, e veio o momento de casar; cada um com sua Maria.
E vieram os filhos, que os tornaram compadres; e todos prosperavam, resultado de suor, inspiração e um bocado de sorte também.
Os filhos cresceram, e vieram os netos, que cresceram também.
Um dia, Joaquim começou a sentir-se estranho. O corpo doia, a cabeça latejava, suores, uma tosse estranha e seca corroendo suas forças. E a febre. Começou devagar, e foi aumentando. A vida, sentia, parecia querer ir embora.
Manoel foi vê-lo. Não havia dia em que os dois amigos não falassem por cima do muro que divisava as duas propriedades; ou tomassem vinho, ora na casa de um, ora na casa de outro. Aquela doença súbita do amigo o preocupava.
Com sua proverbial teimosia, Manoel conseguiu convencer Joaquim a procurar um hospital. E foi com o amigo, que lá ficou. O caso era ainda mais sério do que parecia.
Exames, diagnóstico, remédios caros, internação prolongada, gastos imensos que poderiam consumir talvez o patrimônio acumulado ao longo da vida inteira. Ainda que contrariado, Joaquim submeteu-se ao tratamento. Queria viver.
Alguns dias depois, Manoel passou a apresentar os mesmos sintomas de Joaquim. Não acreditava. Não era possível. Nunca estivera doente em toda sua vida. Destestava remédios, ainda mais quando para si próprio. Precisava trabalhar. Quem tomaria conta dos negócios? De onde sairia o dinheiro para pagar tudo aquilo? E os compromissos? E as economias? Perderia tudo? Passaria fome?
Resolveu tomar uns chás. Era uma leve indisposição. Vai passar. Era um homem forte, apesar da idade. Tinha aquela garrafada que o índio do Amazonas vendia. E aquela velha benzedeira? Infalível. Com certeza daria certo. Era uma coisa à toa, nada com o que se preocupar. E procurou um médico, e outro; nenhum dava o diagnóstico que queria ouvir.
Depois de quase trinta dias de internação, Joaquim se despediu do hospital, sob aplausos da equipe de saúde. Foi praticamente um milagre, conseguido com a ajuda da ciência. E voltou para casa. Em breve chegaria o primeiro bisneto, e aquela tão sonhada volta ao Alentejo finalmente iria acontecer. E de lá, mais além: Paris, Londres, Roma.
A vida é para quem sabe viver.
O enterro de Manoel aconteceu sem velório. Caixão lacrado, carregado por estranhos vestidos como astronautas, embora os médicos houvessem sugerido cremação, para evitar o contágio.
Moral da história: Joaquim vai ter que morrer um dia. Mas não hoje. Hoje, não.
* Advogado em Brasília/DF.
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