Artigo, Leandro Govinda - A pizza de Brumadinho está assando


Promotor de Justiça do MPE de SC, Leandro Govinda

Casos de grande repercussão, como a tragédia de Brumadinho, geram comoção nacional e, invariavelmente, despertam nas pessoas uma sede incomum de justiça. Especialmente as vítimas desejam – e merecem – que os responsáveis sejam punidos, tanto melhor presos. E, invariavelmente, a expectativa é frustrada. Sinto muito dizer, mas muito provavelmente não será diferente em Brumadinho. Se a receita for a mesma, nada vai acontecer. Ninguém vai ser punido com rigor, os familiares das vítimas não serão indenizados e as barragens vão continuar como estão. O máximo que se vai ver é isso que está aí: diretores da vale dando explicações e autoridades anunciando mudanças para evitar uma nova tragédia. Logo, o caso cai no esquecimento e fica o dito pelo não dito. Não se trata de um exercício de futurologia, mas simples observação de um sistema feito sob medida para produzir pizzas. Vou explicar.
O sistema funciona assim. As autoridades responsáveis por apurar crimes e punir criminosos são basicamente o delegado de polícia, o promotor de justiça e o juiz de direito. Tratam-se de profissionais altamente capacitados e muito bem pagos, mas que são ocupados diuturnamente com casos cotidianos que, apesar da baixíssima complexidade, somam número suficiente para afogá-los num mar de processos e burocracia. São os casos do marido que bate na mulher, do sujeito que reclama do som alto do vizinho, do desalmado que judia de um cachorro de rua, do maconheiro que sustenta o seu vício furtando a vizinhança, do pai que não paga a pensão para o filho, do adolescente que falta à aula, do funcionário da prefeitura que apresenta atestado médico falso para não trabalhar e por aí vai.
O delegado, o promotor e o juiz estão ocupados com essa miríade infinita de conflitos, quando, de repente, estoura no seu colo uma bomba do tipo Brumadinho, ou Mariana, ou Boate Kiss, ou avião da TAM. São casos de alta complexidade, que envolvem diversos atores responsáveis e centenas vítimas, que demandam conhecimento de uma legislação especializada, como os setores aéreo e de mineração, e via de regra repercutem em interesses escusos e nada republicanos de bandidos que não medirão esforços para boicotar as investigações. Então, o delegado está lá no seu gabinete concentrado nessa investigação, eis que chega o escrivão para dizer que a polícia militar acaba de apresentar um sujeito preso em flagrante por ter furtado a margarina no mercadinho do Seu Zé. O promotor também está lá escrevendo a petição de buscas, quando o seu assistente bate na porta e avisa que aquela audiência do cidadão que ameaçou a Dona Maricota já vai começar. Finalmente, o juiz igualmente está lá examinando a representação pela prisão temporária dos suspeitos do caso rumoroso, quando o seu assessor lhe avisa que chegou um pedido de informações em habeas corpus do caso do pai preso por não pagar a pensão do Joãozinho. E ai do delegado não lavrar o flagrante, ou do promotor não ir na audiência, ou do juiz não prestar informações ao tribunal. Se não o fizerem, serão chamados a dar explicações, sob ameaças de punição disciplinar por tamanha desídia.
Assim, num piscar de olhos, o caso mais importante da delegacia, da promotoria, da vara e da cidade são deixados de lado para se atender aquelas outras milhares de demandas que, se não são menos importantes, ao menos não deveriam ser prioritárias. Enquanto isso, do outro lado, os investigados daquele caso cabeludo já contam com um batalhão de advogados e técnicos formados nas mais diversas especialidades, pagos a preço de ouro para garantir que nada lhes tire o sono.
Como se vê, não é que o delegado, o promotor ou o juiz sejam preguiçosos ou incompetentes. A disputa é mesmo francamente desleal. Parece óbvio que o delegado, o promotor e o juiz de casos como o de Brumadinho não podem enfrentar sozinhos essas disputas e muito menos enfrentá-las concomitantemente com as suas atribuições ordinárias. É preciso ter presente que casos dessa dimensão e complexidade exigem a formação de um time de investigadores, promotores e juízes especializados na área da investigação, cercados de técnicos e assessores e todos exclusivamente dedicados ao caso. E mais: essa equipe deve ser cobrada pelos resultados efetivos das suas ações, por exemplo, o número de pessoas processadas, condenadas, presas e indenizadas, e não por estatísticas frias que mascaram uma ação pueril e servem só para inglês ver, como é a praxe.
Uma das razões para a operação Lava-Jato ter resultados tão profícuos foi justamente reunir agentes públicos em uma força-tarefa focada nessa única investigação. A contribuição que os responsáveis pela Lava-Jato deram ao país, não só mantendo corruptos poderosos presos, mas recuperando milhões de reais roubados da Petrobrás, seria suficiente para custear os seus salários e as suas aposentadorias até o final das suas vidas. É esse modelo que precisa ser multiplicado em todo o país. Se, no caso de Mariana, uma força-tarefa tivesse levado a cabo as investigações, é possível que muitos servidores públicos e diretores da Vale estivessem presos hoje e, quem sabe, o desastre criminoso de Brumadinho teria sido evitado, poupando-se não apenas milhões de reais em prejuízos materiais, mas principalmente salvando-se centenas de vidas que foram soterradas pela lama, tudo porque o delegado, o promotor e o juiz estavam ocupados com a investigação do sujeito que furtou a galinha do vizinho. Por mais que esses valorosos e bem intencionados agentes públicos se esforcem, nunca vão conseguir fazer um churrasco misturando farinha, sal e água. Se os ingredientes do sistema não mudarem, as instituições vão continuar servindo pizza para a sociedade.

Um comentário:

  1. Claro quando o Chef esta mais preocupado com o raminho para enfeitar o prato da comida dá nisso...
    Mas vai a pergunta? quantas liminares tem nessa bronca toda? e quem dá liminares?

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