Grande parte da imoralidade à sua volta foi
intencionalmente criada pela legislação
Acreditamos que a lei deve ser justa, deve fazer o bem, e
deve evitar e punir o mal.
Acreditamos que os problemas surgem quando a lei é
desrespeitada, corrompida, e não aplicada.
E, óbvio, o que todos nós queremos é estado de direito (e
não estado de exceção), segurança jurídica, império da lei, e governo das leis
(e não o governo dos homens).
Mas há um problema: a lei é feita por homens.
Consequentemente, essa mesma lei que queremos ver sendo
cumprida e aplicada pode também ser injusta, ineficiente e geradora de
corrupção. Mais ainda: pode se tornar ferramenta de poder, de pilhagem e de
controle social.
Eis alguns exemplos.
1) Acreditamos que deveríamos ser todos iguais perante a
lei. Este é o princípio da isonomia e da igualdade formal e jurídica.
Mas é a própria lei que, às vezes, cria diferenças.
É a lei que cria diferenças entre quem tem foro
privilegiado e quem tem a justiça comum.
Entre terra privada e terra estatal — na terra privada,
alguém pode exigir o usucapião; na terra estatal, nunca.
Entre trabalhadores privados que pagam impostos e
burocratas estatais que recebem impostos e salários acima do de mercado.
É a lei que cria diferenças entre quem pode e quem não
pode. Entre quem pode tudo e quem nada pode.
2) Acreditamos que o estado deveria aplicar a lei.
Mas são os entes do estado os primeiros a não respeitarem
a lei.
Quando, por exemplo, fazem o impeachment de um(a)
presidente, mas não retiram seus direitos políticos.
Quando confiscam depósitos judiciais de terceiros para
pagar os rombos nas contas estatais, que eles próprios fizeram.
São eles que não respeitam as leis, com encontros fora da
agenda e com salários acima do teto.
3) Acreditamos que a lei deveria limitar o poder.
Mas é a própria lei que dá poder, ao ponto de muitos quererem
virar juristas e advogados exatamente para ter poder, favores, privilégios e
dar "carteiradas".
É a lei que concede privilégios como carros oficiais com
motoristas, auxílio-moradia, auxílio-transporte, auxílio-creche,
auxílio-educação, auxílio-funeral, auxílio plano de saúde, reembolso por
despesas médicas e odontológicas não cobertas pelo plano de saúde, além de
cafezinho, vale-terno e sofá no gabinete.
Todas essas leis estão na Constituição — a qual, não por
acaso, é a terceira mais longa do planeta—, e são elas que dão poder ao estado
e oneram o STF.
A vagueza da lei sempre deixa alguma margem de
interpretação e muita margem de poder.
Como já dizia a máxima, "aos amigos, os favores; aos
inimigos, a lei".
4) Acreditamos que a lei deve ser moral. E até
acreditamos que ela é moral.
Mas esquecemos que a escravidão foi legal, que os campos
de concentração foram legais, que o apartheid foi legal, que o fundo eleitoral
é legal, que as desapropriações nas favelas e nas periferias são legais, que
ambulantes e mendigos são legalmente retirados todos os dias das calçadas
"com a força de lei".
Esquecemos de que o BNDES, legalmente, retira 9% do PIB e
redistribui dos pobres para as grandes empresas.
A verdade é que a lei acaba com a moralidade.
Quando, por exemplo, o estado finge que está
redistribuindo recursos para os pobres, isso gera uma consequência nefasta: as
pessoas deixam de ajudar os desvalidos, pois pensam: "Eu já fiz a minha
parte; já paguei impostos."
Ou quando o estado institui, por exemplo, prioridades nos
caixas e nos ônibus. A consequência natural é que, quando chega uma gestante ou
um idoso a um caixa normal ou a um assento normal, as pessoas não os deixam
passar, pois pensam que, afinal, há o caixa e o assento específicos para eles.
Confundimos lei com moralidade e, consequentemente,
acabamos nos tornando meros robôs obedientes e amorais.
5) Acreditamos que a lei deve promover um ambiente
econômico eficiente.
Mas é a própria lei que gera ineficiências, quando torra,
por exemplo, bilhões de dinheiro de impostos com Copa do Mundo, Olimpíadas e
estádios (elefantes brancos) em Manaus e Brasília.
Foi por lei que se instituiu e que se administra o BNDES,
o maior banco de desenvolvimento do mundo (maior que o Banco Mundial), o qual
não gera desenvolvimento nenhum. Deveria se chamar BNSUB: Banco Nacional do
Subdesenvolvimento.
É por lei que se faz protecionismo, o qual prejudica o
pobre e premia o rico bem conectado ao governo. Foi assim que o Brasil virou
uma das economias mais fechadas do planeta.
É por lei que se exigem autorizações, concessões,
alvarás, cartórios, filas, licenças e variados carimbos, ao ponto de o Brasil
estar nos últimos lugares nos rankings de liberdade econômica do planeta
(posição 153 em 180, um pouco antes de Cuba, Venezuela e Coreia do Norte).
Este não é um estado que redistribui dos ricos para os
pobres; é um estado que impede os pobres de ficarem ricos.
6) É por lei que, diariamente, hiper-regulamentam a nossa
vida.
Eis alguns casos mais recentes: rádio obrigatório nos
celulares, regulação do esporte eletrônico, proibição de descontos para
mulheres em bares e boates, segunda-feira sem carne, revisão obrigatória do ar
condicionado, kit anti-incêndio nos carros, proibição do sal na mesa, proibição
de cobrança para orçamentos (não existe orçamento grátis!), proibição de cobrar
para se sentar na mesa do bar.
Já houve até uma lei para decidir se a espuma do chope
podia ser considerada parte do chope (!).
Recentemente, foi instituído o "Dia nacional do
desafio" — em todas as últimas quartas-feiras de maio, todas as empresas
devem fazer 15 minutos de ginástica. (Como o sábado fascista de Mussolini,
quando as pessoas eram obrigadas a fazer ginástica em Praça pública)
Desde 1988, foram aprovados 5,4 milhões de dispositivos
legislativos (769 por dia). Só em nível federal foram 15,96 por dia.
Considerando os três entes federativos, tem-se uma média de 217 mil leis em
cima de cada um de nós.
7) E, ainda assim, muitos repetem que "o Brasil tem
boas leis; o problema é que não são aplicadas".
Errado. O Brasil tem leis demais. Se todas fossem
aplicadas perfeitamente, o país simplesmente pararia — exatamente como já
ocorre com o mercado de trabalho, estagnado pelas leis trabalhistas.
É esta visão fantástica das leis que faz com que, em
todas as universidades do país, seja ensinada a visão do "direito como
ferramenta de mudança social" — isto é, a ideia de utilizar o direito para
plasmar e moldar a sociedade segundo os próprios caprichos. E geralmente com
idéias socialistas mascaradas.
Trata-se de pura engenharia social, puro coletivismo,
puro totalitarismo jurídico.
Ao passo que, no resto do mundo, o direito é um simples
"método de resolução de conflitos", aqui no Brasil a regra é criar
mais conflitos por meio da "judicialização das relações sociais",
algo que muitos até celebram. E os advogados agradecem — afinal, a indústria do
dano moral gera milhões de causas lucrativas.
É esta visão da lei que cria o fenômeno do fiscal
"que se acha importante e 'empoderado'", com um crachá a marcar seu
status. Segundo ele, "o Brasil não dá certo porque a lei não é aplicada;
se fosse, seríamos uma Suíça!".
E, finalmente, é ainda por causa desta visão que as
pessoas chegam até a delatar o próprio vizinho porque ousou cortar uma arvore
na própria propriedade ou porque deu um tapa no filho. Delatar o próximo ao
Príncipe é uma mentalidade típica da SS nazista. Mas, para o estado, é
perfeito, pois isso, além de representar uma terceirização da fiscalização,
joga as pessoas umas contra as outras, consolidando ainda mais seu poder.
8) E, com tudo isso, as pessoas ainda repetem que
"falta fiscalização!"
Mas o que acontece de fato é o seguinte: a grande empresa
corrompe diretamente o legislador para fazer uma regulação que irá encarecer os
processos de produção de todo o setor em que atua. Por que ela faz isso?
Porque, ao encarecer artificialmente o empreendimento neste setor, está criando
dificuldades para os concorrentes menores, bem como impedindo a entrada de
novos concorrentes. A grande empresa, rica, consegue bancar tranquilamente esse
aumento artificial dos custos. A pequena, não.
Como consequência, quando o fiscal vai "fazer seu
trabalho de fiscalização" e flagra o pequeno comerciante em desacordo com
esta lei corrupta, ao comerciante não resta alternativa senão pagar a multa ou
pagar o fiscal.
Só que a lei é feita exatamente para gerar essa situação.
9) Acreditamos que a lei deva evitar e punir a corrupção.
Afinal, a corrupção é exatamente desviar do fim oficial e mais nobre da lei, e
desviar recursos e dinheiro.
Mas é a própria lei a gerar corrupção.
Empresas estatais e bancos estatais servem para ser
(legalmente) aparelhados e ter seus cargos loteados por políticos e seus
apadrinhados. Servem também para (legalmente) fazer licitações para obras em
que as empresas amigas serão as ganhadoras.
A hiper-burocracia reinante em nossos portos, os mais
lentos do mundo, serve exatamente para que, em um determinado momento, um
empregado do porto apareça e apresente uma "alternativa", um
"jeitinho" para despachar ou desembarcar a mercadoria mais
rapidamente
O superfaturamento das obras de infraestrutura não é um
"erro", não é uma "falta de planejamento". Ao contrário: é
um planejamento extremamente esperto. A obra para se construir uma ponte é
contratada exatamente para se desviar dinheiro: a empreiteira selecionada é
amiga do político responsável pela estatal ou pelo ministério, e irá cobrar um
preço superfaturado em troca da propina que pagou ao político para ser a
escolhida. O dinheiro da obra vem dos nossos impostos. E a construção efetiva
da ponte representa o custo legal para se fazer esse desvio.
Ou seja: há um custo para o dinheiro ser legalmente
desviado, e esse custo é a ponte.
Com a merenda escolar ocorre o mesmo. Gritar
"roubaram a merenda de meu filho" é algo que pode render notícias de
jornal, mas, assim como a construção da ponte, o objetivo claro do programa
sempre foi desviar dinheiro. E o custo de fazer esse desvio, para os
envolvidos, é ter de nos dar algumas merendas.
O que nós chamamos de corrupção é, na verdade, o objetivo
real dos políticos. É a função normal do estado.
Para concluir
Existe uma grande — e quase intransponível — diferença
entre lei e legislação.
Isso de que estamos falando e na qual geralmente pensamos
é a legislação (e não lei).
As leis são as leis da economia (como a lei da demanda e
da oferta) ou as leis naturais.
A lei é um fenômeno descritivo, espontâneo, de baixo para
cima, natural. Já a legislação é um fenômeno prescritivo, de cima para baixo,
impositivo, um fenômeno político.
A legislação é a mera vontade do Leviatã.
Sim, temos de respeitar a lei e temos de tentar melhorar
a lei. E o que estes dois grandes juízes aqui fizeram [Sérgio Moro e Antonio di
Pietro participam do painel] para domar a besta é fundamental.
Mas não basta.
Temos de revirar o estado do avesso. Temos de reverter a
estrutura do estado. Temos de mudar sua função. Temos de limitar o impacto de
seus incentivos perversos. Temos de fazer tudo isso para que a lei seja mais
poderosa que a legislação. Para que sejam eles — os membros do estado — a
obedecer a nós, e não o contrario.
Temos de diluir o poder político ao máximo possível,
descentralizar de Brasília para os estados, os municípios, os bairros, para que
assim nós possamos fiscalizar o Príncipe. E também para que possamos ter
diferentes sistemas jurídicos concorrendo entre si. Só assim poderemos
experimentar e testar os melhores, emular os casos de sucesso e evitar os casos
de fracasso. Métodos privados de resolução de conflitos, como a arbitragem, têm
de ser ampliados para mais esferas.
E, especialmente, temos de fazer uma divisão clara e
forte entre economia e política, para minimizar o conluio, os lobbies, os
poderes dos grupos de interesse e, por consequência, a própria corrupção.
Temos, em suma, de tirar a política da nossa vida.
Recordo aqui um depoimento de uma senadora famosa ao
TRF-4 (de Curitiba), no qual ela estava sendo perguntada se sabia sobre
nomeações políticas nas empresas estatais. Ela respondeu: "Sim, claro, mas
esta é a lógica da política. Assim como judiciário tem sua lógica, a política
também. Vocês estão querendo criminalizar a lógica da política!"
Sim, caríssima senadora. Queremos criminalizar a lógica
política porque esta lógica da política é criminosa.
Adriano Gianturco G.
é professor de Ciência Política do IBMEC-MG, Doutor em
Teoria Política e Econômica pela Universidade de Genova, Mestre em Ciência
Política pela Universidade de Turim, Bacharel em Ciência Política e Relações
Internacionais pela Universidade Roma Tre. Publicou vários artigos acadêmicos
sobre I. Kirzner; B. Leoni; Abstencionismo e votos brancos etc. É autor do
livro L´imprenditorialitá di Israel Kirzner
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