A explicação difundida sobre as ditas jornadas de junho
de 2013 no Brasil era a profunda insatisfação com os serviços públicos. Havia
inclusive uma tese de a vida ter melhorado dentro de casa mas continuado ruim
fora. Obviamente uma explicação errada. Ou pelo menos gravemente parcial. Pois
os serviços públicos continuam do jeitinho que eram e nunca mais se viu nada
remotamente parecido com 2013. Teve as mobilizações pelo impeachment, mas já
era outra coisa.
Há um esforço intelectual disseminado para encontrar um
fio condutor que ligue as rebeliões populares ao redor do planeta, e
naturalmente cada um puxa a brasa para sua sardinha particular. Uns culpam o
que chamam de neoliberalismo ali, outros a falta de liberdade acolá, outros o
déficit de soberania nacional mais adiante. É provável que todas essas
explicações estejam algo certas. E também por isso elas têm pouca utilidade
para localizar o tal fio condutor.
A erupção de rebeliões populares, como agora no Chile,
exige duas premissas: as pessoas comuns não estarem mais dispostas a aceitar as
condições materiais e espirituais em que vivem e o sistema não mais deter força
suficiente para obrigar as pessoas a continuar aceitando tais condições. E o segundo
fator está associado diretamente à queda nas taxas de coesão entre os grupos
que detêm o monopólio weberiano da "violência legítima”.
A ubiquidade da transmissão de informações e da
conectividade, algo traduzido na expressão genérica “redes sociais”, afetou
diretamente a possibilidade de aplicar essa violência. Ela persiste firme em
situações, como na Síria, onde o poder consegue bloquear a informação. No Chile
não dá. Sebastián Piñera chamar as Forças Armadas teve pouco efeito prático
porque a tropa não pode atirar nos manifestantes para matar. O remédio
pinochetista está vencido.
Qual seria então o tal fio condutor? Uma boa hipótese é o
sentimento de a injustiça ter ultrapassado o limite do aceitável. Verdade que a
régua para medir esse “aceitável" é bastante subjetiva, mas paciência. A
subjetividade explica por que a rebelião popular pode perfeitamente acontecer,
e acontece, mesmo quando as condições materiais objetivas não estão piorando,
ou até quando estão melhorando. Um paradoxo que neutraliza as explicações
mecanicistas e economicistas.
Esse viés subjetivo explica também a certa
imprevisibilidade de acontecimentos como do Chile. Não existe um método
quantitativo 100% confiável para medir quando os de baixo não mais estarão
dispostos a viver como antes e os de cima não mais poderão obrigá-los a isso.
Daí que duas atitudes sejam essenciais no exercício do poder: 1) ficar esperto
e 2) não dar sopa pro azar. O primeiro depende de empatia. Já para o segundo
contribui bastante a paranoia.
Um dia alguém disse que apenas os paranóicos
sobreviverão. Mesmo se for verdade, não é suficiente constatar. É preciso dar
consequência à paranoia. Por isso governos investem tanto em sistemas de
informação, espionagem e repressão, mas também difundem platitudes do tipo
“governarei para todos”, “precisamos unir o país”, “basta de polarização”. São
platitudes, mas ajudam a atenuar o sentimento de estar excluído do jogo, e
portanto de ser alvo de injustiça.
Outro detalhe: os mesmos atores colocarem o gênio de
volta na garrafa pode exigir um nível da tal “violência legítima” acima do
disponível em determinada correlação de forças. Também por isso governos caem.
Aliás, as chamadas transições pacíficas costumam resultar não tanto de um
caráter pacífico inerente aos atores, mas de correlações de força esmagadoras e
que levam à situação ideal de vencer sem precisar guerrear. Só que nem sempre é
possível.
Para o poder, bom mesmo é não deixar o gênio escapar.
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