Editorial de El País, Montevidéu, 03/08/2023
Há duas verdades inapeláveis no cenário político da América Latina: uma é que o Brasil é o país mais poderoso e influente da região. A outra é que Lula da Silva é o verdadeiro líder de toda a esquerda continental. Na construção dessa liderança, teve papel decisivo o Foro de São Paulo, FSP. Rodeado de todo tipo de mitologia, o FSP é um evento no qual se reúnam periodicamente dirigentes dos setores socialistas, comunistas e da ultraesquerda.
Para quem não adotou a ideologia marxista, que é a verdadeira argamassa que aglutina todos esses grupos tão diferentes entre si, o FSP se tornou uma espécie de inimigo mítico oculto nas sombras e culpado de todos os males do continente. Já quem faz parte dele busca de modo permanente passar a impressão de que ele é desimportante e inofensivo.
No mês passado, em Brasília [*], houve mais uma reunião do FSP, quando Lula fez um discurso que dá o que pensar. Durante 17 minutos, falou com sua rouquidão alcoólica e sua retórica treinada em milhares de reuniões e assembleias como sindicalista e político. Aí, não só pôs em evidência as misérias e a arrogância de sua visão ideológica, mas também tentou transmitir algumas lições positivas de sua longa vida política. Um discurso que acabou servindo também para deixar em descoberto o viés perverso que domina atualmente a circulação das informações.
Para se ter ideia, as pessoas são enquadradas pelo algoritmo das redes sociais conforme os canais e conteúdos que costumam acessar. Depois, passam a receber mensagens de acordo com o seu perfil. Se ficou evidente que, por exemplo, você não gosta de Lula, provavelmente você vai receber vídeos com falas indignantes do presidente brasileiro. É o caso daquela em que Lula responde a quem acusa a sua turma de "comunista" e de "socialista" e diz: "Isso não nos ofende, isso nos orgulha!"
Aliás, parece realmente insólito que, em pleno 2023, uma figura como Lula ignore os muitos motivos que há de fato para sentir vergonha de estar vinculado aos partidos e ideologias comunistas.
Agora, se você se inclina para a esquerda ou se é a agência espanhola EFE e sua visão tendenciosa, então o que vai ser realçado no discurso de Lula é sua recomendação de "exercitar a democracia o máximo possível" e sua afirmação de que na democracia "você estabelece uma alternância de poder" (sic). Por sinal, são palavras que devem ter soado muito estranhas para os representantes de Cuba, Venezuela e Nicarágua, regimes apoiados por Lula, nos quais nada disso existe.
Pois tudo isso estava no discurso de Lula, além doutras frases polêmicas como, por exemplo, afirmar que em 500 anos de história, o período em que a América Latina mais teve "conquistas" e "políticas de inclusão social" foi ao tempo em que seu partido, o PT, governava o Brasil: 2003 a 2016. Ou relatar que, no primeiro FSP, alguns países tinham "organizações de esquerda todas muito pequenas mas todas muito cheias da verdade". Como se vê, a modéstia não é uma característica das esquerdas continentais.
Também não o é o espírito crítico. É realmente absurdo que uma figura como Lula pareça não sentir vergonha de estar hoje vinculado a partidos e ideologias comunistas. Não se trata de uma forma de demonização ou desprezo. É fato inegável que a ideologia comunista levou só ruína econômica aos países em que chegou ao poder, implantando regimes assassinos que em nada ficam atrás do nazismo.
E não estamos falando apenas do que aconteceu há meio século na Rússia, na Hungria ou no Camboja. Com efeito, falamos do que está ocorrendo neste momento em nossa região: em Cuba, na Venezuela e na Nicarágua. Sim, falamos de países cujos representantes Lula convidou para comer salgadinhos e tomar cachaça.
O que Lula banaliza em seu tom arrogante e desdenhoso é a tragédia dos sete milhões de venezuelanos que tiveram de abandonar sua pátria para não morrer de fome com as políticas genocidas de seus amigos Chaves e Maduro. Onde está a alternância democrática na Venezuela?
E onde está a democracia em Cuba, país em que pessoas acham melhor o risco de serem comidas por tubarões do que seguir suportando a violência e as privações de um regime repressivo que nada tem a invejar do pior autoritarismo da história?
Aliás, o discurso de Lula, ouvido por completo, é ainda mais indignante do que os trechos divulgados por seus mais acérrimos inimigos políticos. Porque deixa evidente que Lula é muito inteligente e que, apesar do que está dizendo, entende perfeitamente as vantagens e os êxitos de uma democracia funcional e completa.
Sim, Lula conhece o bem da democracia. Mesmo assim, ele está disposto a aceitar em sua mesa aqueles que a violam sistematicamente, aqueles que reprimem e subjugam o povo, aqueles que pisoteiam todas as liberdades. E a única explicação para que alguém na condição de Lula se comporte assim é uma sede desmedida de poder e uma hipocrisia que supera todos os limites imagináveis. E que defeito poderia ser pior num governante?
[*] A 26ª edição do Foro de S. Paulo ocorreu em Brasília de 29/06 a 02/07/2023. Fundado em 1990 por Fidel Castro, Hugo Chaves e Lula, tem esse nome porque a primeira reunião deu-se na capital paulista. Durante duas décadas, as esquerdas conseguiram esconder a sua existência. E quando ele começou a ser denunciado, a militância reagia acusando "teoria da conspiração". Além de partidos de esquerda, as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), grupo com ligações com o narcotráfico e que se notabilizou por usar métodos desumanos de recrutamento e por manter centenas de pessoas sequestradas, tiveram participação ativa em várias de suas edições. N.T.
Tradução de Renato Sant'Ana.
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