Artigo, Renato Sant'Ana - Cinema: diferenças na tela, contradições na vida

A arte presta-se tanto a adoçar-nos a alma quanto a torná-la amarga. E tem, aliás, servido nos dois sentidos. Quem produz arte pode escolher o efeito que quer causar com ela. Só que nós não temos que aceitar o que polui o coração: ninguém é obrigado a consumir lixo.

Talvez o cinema (a sétima arte) seja o que tem conexão mais direta com o público. Ainda mais quando o filme é visto na tela grande, numa sala em penumbra e com poltronas confortáveis. É aí que, livre de estímulos externos, relaxando o corpo e soltando a imaginação, a pessoa entra numa história fictícia e vive a fantasia como se fosse realidade.

Registre-se que o velho cinema agora tem a competição feroz de serviços de streaming que permitem ver filmes em um dispositivo conectado à internet sem sair de casa. Mas o assunto aqui é outro.

Foi na Netflix (portal de streaming) que assisti a "Goyo", um filme argentino daqueles! Goyo é um homem jovem, com boa condição social e formação sofisticada (tem até um doutorado na Espanha). Apesar disso, ele é mero guia no Museu Nacional de Belas Artes em Buenos Aires. E tudo vai bem até que Goyo se enamora de Eva (mais velha do que ele), que trabalha como vigilante no museu.

O mote do filme é a síndrome de Asperger, entre cujos aspectos está a inaptidão para captar no convívio social sinais que às vezes falam mais do que as palavras, como ironia, sarcasmo, alterações do tom da voz ou expressões faciais. A pessoa capta só a literalidade do que se diz. Goyo tem Asperger: entende precariamente os outros, além de lidar mal com as próprias emoções. Uma mente brilhante e uma alma delicada, mas um homem aprisionado na solidão de um quadro mental implacável.

Em contrapartida, ele não tem sequer aquela pequena dose de cinismo das conveniências sociais nem pratica a arte da simulação. Na visão de uma Eva encantada, ele é "um cara que não sabe mentir, que te diz o que pensa, que é educado, inteligentíssimo, que é incapaz de fazer qualquer mal e que, além de tudo, é lindo!"

Goyo é estranho. Desestabiliza as relações sociais com sua "diferença". E nos deixa com o coração apertado com sua profunda solidão, que ele enfrenta com toda dignidade. Ele não tem o vício da moda: o vitimismo.

É curioso, mas enquanto torcemos pela felicidade de Goyo, nasce em nós o desejo de aceitar as pessoas como elas são, isto é, com suas diferenças. É um filme apto a enternecer o coração do público. Nada a ver com as patetices que inundam as redes sociais repetindo e banalizando palavras como "diferenças", "empatia" e outras que, pelo uso impróprio (e tantas vezes mal-intencionado) já pouco ou nada dizem.

É com arte que Marcos Carnevale (diretor e roteirista do filme) põe em tela a questão das diferenças. E lança luzes sobre o humanismo "fake" dos movimentos identitários, que, no que se refere a diferenças, querem falar sozinhos e constranger os demais. Enquanto "Goyo" sensibiliza e desperta amorosidade no público, os movimentos identitários fomentam a revolta, o ressentimento e o revanchismo.

Aliás, a história ensina. Mas quem aprende? Não foi com ressentimento, foi na chave da não violência e do não revanchismo que Nelson Mandela, Martin Luther King e o Mahatma Gandhi lideraram mudanças profundas em seus respectivos países.

Tem exemplo mais eloquente? Em 15/09/1963, facínoras da Ku Klux Klan explodiram uma bomba numa igreja de Birmingham, no Alabama, EUA, matando quatro meninas (negras) e deixando 20 feridos. No funeral das garotas, Luther King - líder negro e apóstolo da paz - falou a uma multidão consternada. Mas, em vez de incitar o ressentimento, ele disse: "Apesar desta hora sombria, não devemos perder a fé em nossos irmãos brancos."

Detalhe, Mandela, Luther King e Gandhi são solenemente ignorados pelos movimentos identitários.

Volto à arte. Quem lê o conto "Aqueles dois", de Caio Fernando Abreu, chega a sentir um certo estranhamento ante o absurdo que é segregar as pessoas por sua afetividade ou, se preferirem, sua sexualidade. Trata-se de arte, de literatura, não de um panfleto para agredir.

Já os movimentos identitários, embora partindo de um pressuposto correto de busca de igualdade perante a lei, cometem o erro de radicalizar as diferenças. Não querem mudar percepções, mas fazer "enfrentamento" e constranger quem não é parte do grupo que eles dizem representar. O resultado é jogar mulher contra homem, negro contra branco, homo contra hetero, deficiente contra "normal", sendo que, a cada tanto, inventam uma nova identidade para uma nova rivalidade.

Não há como não lembrar aqui um assunto que a maioria já esqueceu. Na abertura dos Jogos Olímpicos de Paris, militantes da "Teoria Queer" fizeram uma grosseira paródia da Santa Ceia, ridicularizando um símbolo magno dos cristãos - só mais um ato na guerra para exterminar valores da cultura ocidental (poupo o leitor dos pormenores). O mundo reagiu. E as explicações escapistas de Thomas Jolly (responsável artístico pela cerimônia) e de Anne Descamps (porta-voz do evento) acabaram muito mais confirmando que negando o intuito funesto daquela pantomima

Thomas Jolly disse: "Acima de tudo, eu queria enviar uma mensagem de amor; de inclusão e não de divisão." Se o propósito foi esse, então ele é burro, porque só dividiu. E Anne Descamps declarou: "(...) acho que tentamos celebrar a comunidade e a tolerância." Ela "acha que tentaram"? Não tem certeza? Por que é que não assumem o que de fato fizeram?

A pronta reação da falange do politicamente correto foi espalhar nas redes sociais que aquilo se inspirou na obra "Le Festin des Dieux", quadro do holandês Jan Van Bijlert. Porém, é tolice tapar o sol com a peneira. Valem aqui as palavras cautelosas de Sasha Grishin, historiador de arte e professor emérito da Universidade Nacional da Austrália: "A ideia da figura central com uma auréola e um grupo de seguidores de cada lado é tão típica da iconografia de 'A Última Ceia' que interpretá-la de outra forma pode ser um pouco imprudente".

"Será que o deboche a partir da Última Ceia não reproduzirá e reforçará os preconceitos que se querem combater?", questiona Dom Odilo Scherer, cardeal e arcebispo de São Paulo. O bispo alemão Stefan Oster chamou a paródia de "Última Ceia queer", para ele "um ponto baixo e supérfluo na encenação". E o sacerdote colombiano Nelson Medina (doutor em teologia) foi certeiro: "Eles são covardes: eles não mexeriam com Maomé."

A arte verdadeira vem do espírito, fala ao espírito e instiga a consciência: tudo mais é impostura ou ignorância. Carnevale não tenta fazer a cabeça de ninguém com sua arte. No entanto, "Goyo" mexe com o coração do público. Não dá para dizer que igual efeito produziu aquela performance queer, que, segundo nota oficial dos Jogos Olímpicos, pretendeu conscientizar "as pessoas sobre a violência entre seres humanos": pretensão autoritária que nada de bom poderia trazer.

Manipular a opinião pública por meio de armadilhas cognitivas é uma das facetas mais perversas do autoritarismo. Este é o nó: embora partindo de causas justas, as políticas identitárias sequestram consciências e suscitam rivalidade e revanchismo, em vez de promover o respeito às diferenças.

A Europa, como cultura, caminha acelerada para o desaparecimento. E a França talvez seja o caso mais grave dessa degradação. E qual será a causa? Ora, em nome do respeito à liberdade, à livre manifestação e ao livre pensar (traço distintivo da cultura ocidental), toda sorte de violência moral e de militância pelo extermínio dessa cultura é mais do que tolerada: é garantida. O autoritarismo da militância queer é só um exemplo. E tudo isso com a patética negligência inclusive de sedizentes cristãos, curiosamente incapazes de defender seus próprios valores.

Mas, a vida é feita de escolhas, sejam elas genuínas ou manipuladas, conscientes ou inconscientes. Enquanto pessoas de boa índole seguirem dando mais atenção ao bizarro que ao sublime e mais crédito à ideologia do vitimismo que a exemplos de pró-homens como Mandela, Luther King e Gandhi, nossa civilização continuará, como de fato está, em marcha à ré.

 

Renato Sant'Ana é Advogado e Psicólogo.

E-mail: sentinela.rs@outlook.com

2 comentários:

  1. "Unlimited tolerance must lead to the disappearance of tolerance. If we extend unlimited tolerance even to those who are intolerant, if we are not prepared to defend a tolerant society, then the tolerant will be destroyed, and the tolerance with them. We should therefore claim, in the name of tolerance, the right not to tolerate the intolerant". (Karl Popper)

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  2. Como sempre, querido Renato, magistralmente descrita a nossa triste realidade... Excelente reflexão e análise. Bravo!!!!!

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