- Artigo publicado no caderno Eu &Fim de Semana | Valor Econômico
Quem são os miseráveis das estatísticas oficiais que nos
dizem o que é o Brasil que não gostaríamos que o Brasil fosse? Como é possível
que a herança de um regime político que proclamou ter acabado com a pobreza no
país seja justamente a de mais de 13 milhões de miseráveis, com aumento de 1,5
milhão em pouco tempo? A de 12,3 milhões desempregados? A de uma política
social cuja grande marca é a de um auxílio à sobrevivência a mais de um terço
da população de 11 Estados do Norte e Nordeste por meio do Bolsa Família e 21%,
um quinto, da população brasileira dele dependente? Sem contar mais de 5
milhões de brasileiros à procura de emprego há mais de um ano? A daqueles com
maior incidência de desalentados, os que desistem de procurar emprego, nas
regiões Nordeste, Sudeste, Norte? A de um país com mais de 27 milhões de
trabalhadores subutilizados?
Esses dados aparentemente desencontrados convergem na
indicação de que se trata não só de problemas não resolvidos, mas também de
problemas de solução pela metade e em boa parte sem perspectiva de solução.
Esses números não nos falam apenas da herança numérica líquida de um desastre
social e político, de que não tomamos consciência no devido tempo porque
acobertada por induções mágicas de leitura de tabelas.
Neles está aquela parte de solução lenta e não
integrativa, a dos milhões que há mais de ano procuram trabalho. Ou aqueles
subutilizados que refletem a substituição de trabalho humano por tecnologia. Um
cenário de descarte de seres humanos e de falta de criatividade política para
estabelecer um nível de emprego capaz de assegurar à sociedade inteira a
segurança de que cada brasileiro está social e economicamente integrado. A não
integração não é normal nem é decente.
O que resta desse cenário é que pelo menos um quinto dos
brasileiros vive hoje à margem do sistema econômico e que estar à procura de
emprego já não é temporário, é uma ameaça a muitos e um traço da identidade de
milhões de brasileiros. São os situados no limiar da integração estável, os sem
motivos para subscrever o pacto social e político que garanta a ordem no país.
Discutir segurança, educação, identificação com o destino
comum, respeito aos direitos humanos e até mesmo o reconhecimento da humanidade
de todos, sem levar em conta a exclusão social de tão extensa parcela de
brasileiros, é ingênua concepção dos problemas sociais e dos riscos políticos a
que o Brasil está sujeito.
O Brasil criou um sistema capitalista peculiar em que a
reprodução do capital se tornou dependente de técnicas de acumulação que vão da
corrupção, à especulação, às formas rentistas de extração de excedentes
econômicos dos mais frágeis e desvalidos. Favela não é produto de pobreza, é
produto do enorme e descabido custo da renda fundiária urbana, nos preços
especulativos dos terrenos, causa da invasão de terras desocupadas. Nas grandes
cidades brasileiras é possível ganhar fortunas sem o investimento produtivo de
um único centavo, apenas comprando terras por pouco para vendê-las por muito.
A superação capitalista das insuficiências econômicas e
das injustiças sociais depende de um retorno ao capitalismo. O que depende de
democracia, de equilibrado senso de justiça e da gestão da riqueza em nome do
bem comum, e não em nome de concepções egoístas de ganho e propriedade.
O sociólogo alemão Max Weber mostrou que o capitalista
verdadeiro é o empresário que atende a vocação impessoal de fazer o sistema
funcionar. O próprio Karl Marx, autor da primeira teoria cientificamente
fundamentada do que é a sociedade capitalista, já havia apontado que o
capitalista é um funcionário do capital, e não um senhor feudal da riqueza
injustamente acumulada com base em privilégios de mando e dominação. Lucro é
outra coisa.
A abundância do noticiário sobre a corrupção no Brasil é
um indicador poderoso de que o capitalismo entre nós sucumbiu à incompetência
para prever os ganhos extraordinários da inovação, que é um bem comum, e para
gerir os desdobramentos sociais desses ganhos. Sobretudo para compreender em
tempo os problemas sociais decorrentes do mau funcionamento do sistema
econômico.
Na maioria dos países latino-americanos, e disso o Brasil
é "modelo", o sistema econômico vem se tornando o do descarte social
de seres humanos, caso da Venezuela. Nessa brutal criação da humanidade mínima,
direita e esquerda são reciprocamente cúmplices. O pseudocapitalismo residual
latino-americano e o pseudossocialismo regional, resto de concepções dos
fracassos do comunismo antimarxiano, são face e contraface das mesmas
insuficiências de compreensão do processo histórico e das limitadas
possibilidades da região.
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José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia
Paulista de Letras e autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê Editorial), dentre
outros.
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