É hora de exigir investigações
Há pouco mais de 6 anos, 242 pessoas (grande parte delas,
jovens) morreram e 680 ficaram feridas no incêndio da boate Kiss em Santa
Maria. Três anos depois, outras 19 pessoas morreram em Mariana, engolidas pela
lama de uma barragem rompida. Em 2 de setembro, no Rio de Janeiro, labaredas
devoraram o acervo histórico e cultural mais importante do Brasil, destruindo o
Museu Nacional.
Há quase 3 semanas, são mais 165 mortos (até este
momento), após a ruptura de outra barragem, em Brumadinho (há ainda 160
desparecidos) e, na última semana, novamente as chamas mataram 10 jovens e
promissores atletas do Flamengo, no Rio, que eram obrigados a morar num
alojamento clandestino, criminosamente oferecido pelo clube.
Alguns se apressam em se defender dizendo que as
situações são heranças malditas, na busca patética de fazer do passado álibi,
como se não tivessem de enfrentar na plenitude as situações com todas as
forças, a partir do momento em que recebem poderes e atribuições que os
habilitam a enfrentar a realidade.
Outros se referem aos eventos de fogo e lama mencionados
como tragédias, e são mesmo, por seu poderio de gerar emoções trágicas coletivas,
decorrentes do dramatismo e da dor, o que é compreensível num país como o
Brasil em que as pessoas se mobilizam para ajudar diante de catástrofes e
situações geradoras de vulnerabilidades humanas extremas.
Mas os acontecimentos mencionados, é público e notório,
não podem ser etiquetados pura e simplesmente como catástrofes oriundas de
forças indomáveis da natureza. Haveria um denominador comum entre todas estas
labaredas e os mares de lama de Mariana e Brumadinho?
Em Santa Maria, há processo criminal em andamento contra
os donos da boate e contra seguranças, mas ninguém até hoje foi punido. A porta
de saída para os usuários do local era tão absurdamente estreita quanto as
chances de sobrevivência de quem ali esteve naquela fatídica noite.
Não é necessário ser gênio da Engenharia ou do Direito
para concluir que a liberação do uso daquele local por seres humanos foi
criminosa e oriunda de uso abusivo do poder (corrupção).
Por outro lado, a metodologia utilizada nas barragens de
Mariana e Brumadinho é precária e perigosa, sendo hoje proibida por lei em
países como o Chile, país sul-americano que ocupa a posição 27 no índice de
percepção da corrupção da Transparência Internacional de 2019. Brasil é o 105º.
Ao serem apresentadas propostas para aprimorar a lei em
relação à concessão de licenças ambientais para proteger o meio ambiente e
vidas humanas, houve leniência legislativa e, passados 3 anos do morticínio de
Mariana, quando se imaginou que aqueles fatos gerariam lições que seriam
assimiladas e que gerariam mudanças profundas para evitar novos morticínios
como aquele, em Brumadinho, o crime se repete com os mesmos requintes de
crueldade, ceifando quase 800% mais vidas.
O sangue das vítimas se mistura à lama em meio à
atividade mineradora gananciosa, onde, para se extrair um quilo de ouro se
produzem 200 toneladas de rejeitos.
Alguém pode crer que as licenças ambientais de Mariana e
Brumadinho foram outorgadas sem ter havido qualquer espécie de ato de abuso de
poder? Que na planilha das empresas, a prevenção e proteção a vidas humanas
tinha alguma importância? Não se vêem por ali sinais de capitalismo humanista.
No Museu Nacional, a grave inação no plano da manutenção
preventiva tragou tesouros de valor incomensurável, ícones da história da
civilização, devorados pelas labaredas que se impuseram graças à total e
absoluta incompetência administrativa, amplificada pelos efeitos aterradores da
corrupção, que devora os recursos destinados às políticas públicas no meio do
caminho, destinados à cultura, à saúde, educação, moradia, saneamento básico,
manutenção de museus.
Gestão ruim, verbas desviadas, crônica da morte anunciada
da nossa história, de nossas origens, de nossas matrizes culturais, de nossas
raízes.
Que dizer então do incêndio que matou os meninos que
dormiam num alojamento clandestino, pois naquele local, onde poderia funcionar
apenas um estacionamento, seres humanos eram submetidos a viver em perigo sem
que o clube tivesse uma gota sequer de preocupação com o cumprimento da lei, já
que tinha sido multado 31 vezes pela irregularidade e se manteve transgredindo,
até queimar vivos os 10 jovens.
E estes são apenas alguns episódios ilustrativos da
pantomima. Há muitos outros mais, como o do deslizamento decorrente das chuvas
no Rio, que acaba de matar mais 6 pessoas, desabrigando centenas, expondo as
tragédias da política pública da moradia.
Perto dali, mais um trecho da ciclovia foi arrastado
–duas pessoas já morreram em virtude da queda de um 1º trecho, quando se
descobriu que o projeto não levou em conta nada menos que a força do mar,
assentando-a sobre o nada.
Os 3 poderes têm deixado em significativa medida de
cumprir sua missão. O Latinobarômetro 2018 detecta que 93% dos brasileiros
consideram que os detentores do poder usam-no para se auto-beneficiar. Falta
espírito público e seriedade republicana na elaboração de leis que efetivamente
deveriam proteger a sociedade.
Falta postura ética por parte de quem integra o Executivo
(e das empresas), no sentido de cumprir e fazer com que se cumpra a lei com
rigor. Falta agilidade por parte do sistema de Justiça, a quem incumbe
interpretar a vontade abstrata da lei nos casos concretos no sentido de impor
graves consequências aos desvios, para gerar efeitos preventivos.
Mais que catástrofes naturais, os eventos derivaram do
descaso, do descalabro, da delituosa falta de respeito pela vida humana e pela
sociedade como um todo. Será que estamos nos transformando em um país
especializado em contar cadáveres produzidos por eventos que poderiam ser
evitados, se houvesse ética, respeito à dignidade humana e submissão ao império
da lei?
É hora de cada cidadão exigir com energia que as
autoridades dos 3 poderes cumpram na plenitude seus papéis e responsabilidades
e prestem contas à sociedade, pois há muito mais por trás das labaredas de fogo
e do mar de lama mineiro que supõe nossa vã filosofia.
- Roberto Livianu, 50, é promotor de Justiça em São Paulo e
doutor em direito pela USP.
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