Como enfrentar a narrativa populista
William Waack
As pessoas hoje me conhecem mais como apresentador de
telejornal e de um programa semanal de debates, mas minha carreira como
jornalista foi sobretudo a de repórter. Meu coração bate repórter; apenas estou
apresentador.
Isto é para dizer que não consigo, ao analisar a
realidade em que vivemos, fugir à grande lição que aprendi como repórter: fatos
não são fatos. Fatos são o que as pessoas fazem do que julgam enxergar e viver.
Pode parecer um contrassenso, mas fatos não ficam de pé
por si mesmos (o que vem sendo objeto novamente de pesquisa acadêmica
interessantíssima). O quadro é particularmente grave e deprimente para quem,
como eu, não está disposto a viver resignadamente no que alguns já chamam “a
era da pós-verdade”.
O rótulo pode ser novo e atraente, mas o fenômeno é tão
antigo quanto a humanidade, ou seja, quanto a política – sim, porque qualquer
tribo de primatas pratica a política, no sentido mesmo que aplicamos ao falar
do Congresso: com chefões, suborno, violência, cooptação, alianças e objetivos.
Fatos não se impõem por si, ao contrário do que os
economistas muitas vezes acreditam. Até os desastres – nem mesmo os naturais –
não são percebidos da mesma maneira por pessoas diferentes em termos de suas
causas, consequências e medidas para corrigir o estrago. Tudo isso é senso
comum, que os psicólogos estudam há mais de sete décadas e que alguns
descreveram (estou simplificando a tese) como “desfazendo” a realidade. Em
outras palavras, nós seletivamente amplificamos o que nos convém, ignoramos o
que nos é inconveniente, e reinterpretamos tudo à nossa volta.
Sendo minha biografia a de um repórter encarregado de
explicar rapidamente para o público brasileiro realidades complexas em países
distantes, meu cacoete ao analisar a situação atual vem da política, e não da
sociologia ou psicologia. E na política, o fenômeno considerado “atual” faz
parte dos clássicos há séculos, com abundante literatura a respeito escrita já
bem antes de Cristo. O fenômeno do discurso populista atual obedece às mesmas
linhas gerais de sempre: contar mentiras que possuem alguma verossimilhança com
a “verdade”, repeti-las à exaustão, apelar ao medo e prometer soluções rápidas
e fáceis.
Quem acabou descrevendo de forma muito contundente o que
acontece na era da revolução da informação (nas “redes sociais”) foi Umberto
Eco, ao dizer que se tratava em boa medida do “empoderamento de imbecis”. Não,
não é arrogância elitista. É a ideia de que a velocidade e a amplitude da
comunicação entre pessoas – em vez de torná-las mais curiosas ou ávidas por
checar os fatos, procurar os fatos, confrontar-se com fatos desagradáveis –
apenas reforçam preconceitos, pressupostos e aquilo que já se considera o
“certo”.
É outro truísmo afirmar que discursos populistas
dificilmente ganham projeção se não tiverem uma conexão mínima com o
“zeitgeist”, com o espírito de uma época. Como o tema desta minha contribuição
ao trabalho do Geraldo Samor é tentar responder à questão “como enfrentar a
narrativa populista?”, minha resposta não é animadora.
Aquilo que nós, jornalistas profissionais com opiniões –
mas desvinculados de orientações partidárias e afiliações a grupos de interesse
– consideramos “fatos essenciais” que deveriam em mínima medida ser levados em
consideração por agentes políticos, econômicos e eleitores, não são levados em
conta sequer por boa parte do público.
Ao contrário: frequentemente, a tentativa de
contra-atacar uma óbvia mentira (a de que Lula e Dilma não foram em larga
escala responsáveis diretos pelo descalabro econômico, político e moral no qual
nos encontramos, por exemplo) através de um bombardeio de fatos provoca em
muitos casos a reação contrária. Em outras palavras, contrapor um mito à
realidade dos fatos reforça o mito.
Infelizmente, é um bocado assim: dados importantes da
realidade surgem na era da narrativa populista como coisa chata. É muito mais
fácil e confortável agarrar-se defensivamente ao que cada um já considera sua
visão de mundo estabelecida.
Mas como, então, enfrentar a narrativa populista na era
da pós-verdade?
Tentando vencer a guerra cultural na qual estamos. Usando
os fatos para descrever o mundo. Nunca abandonando o que considero o foco
central da atividade do jornalista profissional: a preocupação em contar
histórias de pessoas para pessoas, o respeito ao público, aos princípios
universais dos direitos humanos, das liberdades, da tolerância e, na minha
convicção pessoal, do lugar central do indivíduo – em oposição às narrativas de
utopias sociais ou controle a partir de instâncias superiores sempre ocupadas
por grupinhos que julgam saber o que é a História ou o que é melhor para a
humanidade.
Acho que é uma tarefa ingrata nas circunstâncias atuais,
mas a única moralmente aceitável.
Enfrentar a narrativa populista é descrevê-la
incessantemente pelo que ela é, pelo que tem de prejudicial à própria vida dos
que dela se tornam reféns, pelo que ofende a inteligência e os princípios
universais aos quais me referi acima, pelo mal e dano que causa em prazo mais
longo às sociedades humanas e seus integrantes.
O antídoto contra esse tempo perigoso e imprevisível é
agir com a própria consciência.
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