A verdade é espantosa: o governo federal desfigurou a Lei
Anticorrupção em vigor há menos de três anos com a edição da medida provisória
703. E o motivo é óbvio. Apesar de imperfeita, a lei nº 12.846, permitiu que a
Operação Lava Jato celebrasse acordos de leniência com algumas das empreiteiras
envolvidas no escândalo.
Esses acordos revelaram estruturas sistêmicas de
corrupção de agentes públicos e políticos, em benefício de empresas em obras
federais, e da estrutura político-partidária que sustenta o governo.
Assim, minado pelos seguidos crimes revelados, o governo
atropelou mudanças legislativas discutidas no Congresso, em urgência que
somente se explica pela necessidade de estancar essas revelações.
Enquanto se discutia a possibilidade de expropriação do
controle de empresas corruptas ou a impossibilidade de acordo sem a
participação do Ministério Público, a edição sorrateira da medida provisória,
em pleno recesso, trouxe mudanças que interessam, em essência, às empreiteiras
investigadas.
A medida provisória 703 simplesmente extinguiu os
incentivos para que empresas efetivamente colaborem com as investigações.
Anulou a exigência de que apenas a primeira empresa do conluio predisposta a
colaborar possa celebrar o acordo. Essa regra instituía o "dilema do
prisioneiro", um incentivo à quebra da unidade, do silêncio entre os
corruptos.
Além disso, não mais exige que o novo acordo somente
ocorra com provas de corrupção em outros órgãos. Revogou ainda a admissão de
culpa, trocando-a por responsabilização objetiva, sem que a empresa seja
obrigada a entregar provas contra seus gestores. Enfim, todas as mudanças
necessárias para viabilizar o "acordão".
A justificativa dessa mudança não convence nem o mais
ingênuo. Buscando a estratégia do medo, o governo afirma que esse esforço busca
garantir o ressarcimento da Petrobras e evitar um mal maior à economia
brasileira. Na verdade, é o patrimônio dos acionistas, de pessoas e famílias
poderosas, muitos dos quais respondem a acusações criminais, que está sendo
salvo pelo favor do governo.
Essas empreiteiras, com décadas de atuação em um modelo
de negócio corrupto, não fizeram mal apenas aos cofres públicos, dilapidados
pelos preços onerosos que a corrupção e o cartel impõem, mas também sempre
foram nefastas ao surgimento de empresas que trabalham licitamente.
Como realizar negócios quando os concorrentes corrompem
estruturas partidárias dentro do governo para ganhar licitações? A expertise
está em nossos engenheiros, nossos mestres de obra, os quais seriam rapidamente
absorvidos por novas empresas, e não nessas estruturas espúrias decorrentes de
nosso capitalismo de compadrio.
O que fica claro é que assinamos tratados internacionais
contra a corrupção apenas para "inglês ver", fazemos leis para não
pegarem, temos estruturas ineficientes para criar as dificuldades. Mesmo quando
uma lei é cumprida e as instituições trabalham, como na Operação Lava Jato, a
solução do governo é mudar a lei para continuar tudo como antes.
Que país desejamos? Não podemos concordar com um modelo
econômico baseado na corrupção e nos cartéis. Não importa quanto custe, devemos
enfrentar isso como um dependente que enfrenta o vício. Não há caminho fácil,
nem indolor. Se o combate à corrupção falhar, talvez tenhamos que esperar
décadas por outra oportunidade.
CARLOS FERNANDO DOS SANTOS LIMA, procurador regional da
República, é mestre pela Universidade Cornell (EUA) e membro da força tarefa da
Operação Lava Jato
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