Editorial, Estadão - O silêncio obsequioso da esquerda identitária

Ao indicar o ministro da Justiça, Flávio Dino, para o Supremo Tribunal Federal, o presidente Lula da Silva causou considerável frustração entre os petistas, que não gostam de Dino, e, sobretudo, entre os militantes dos movimentos de esquerda que fazem das questões raciais e de gênero o centro de sua luta política – o chamado “identitarismo”. Dos petistas, é claro, não se esperam mais que queixumes, pois quem manda no PT, praticamente desde sua fundação, é Lula, e não é ajuizado enfrentar o demiurgo. Já da tal esquerda “identitária” se esperava uma reação barulhenta e raivosa, como é habitual para essa turma, mas eis que dela só temos notícia de um obsequioso silêncio.


Até a última segunda-feira, as convicções em torno da possível nomeação de uma mulher (e, preferencialmente, uma mulher negra) se ancoravam nos simbolismos da posse de Lula. Na festa organizada por Janja, sua esposa, o petista recebeu a faixa presidencial de oito brasileiros calculadamente escolhidos para representar a diversidade brasileira – estavam ali, entre outros, um indígena, um metalúrgico, uma criança, um professor, uma pessoa com deficiência e uma mulher negra. Não satisfeito com a força da imagem na subida da rampa, prometeu em discurso fazer uma convocação nacional para um “mutirão pela igualdade”.


Acostumados a interpretar como revelação mística a parolagem lulista, movimentos sociais que trabalham com causas de gênero e de raça acreditaram na promessa presidencial. Aos poucos, ao perceberem que o novo governo estava longe da prometida diversidade, passaram a empenhar-se numa campanha em favor da indicação de uma ministra negra para o Supremo. Artigos, declarações públicas, publicações nas redes sociais e até outdoors instalados em outros países, durante viagens do presidente, compuseram o arsenal da campanha, que envolveu ativistas, influenciadores digitais e personagens dedicados à causa. O primeiro desgosto logo chegaria com a nomeação de Cristiano Zanin, o ex-advogado de Lula durante o seu calvário na Lava Jato. A pá de cal veio nesta semana.


Como se sabe agora, se o recém-indicado passar pela sabatina no Senado, o STF terá somente a ministra Cármen Lúcia como mulher em sua composição. Desde a redemocratização, a Corte teve apenas três mulheres: Ellen Gracie, Cármen Lúcia e Rosa Weber, indicadas respectivamente por Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff. O STF também exibirá a segunda menor representatividade feminina na América do Sul. A própria Rosa Weber afirmou que o déficit de representatividade feminina nos espaços de poder significa “um déficit para a própria democracia”. Para porta-vozes da campanha em favor de uma mulher negra, a política e o Judiciário reproduzem atributos da sociedade brasileira, marcadamente patriarcal, machista, sexista e, em vários níveis, racista – entre 171 ministros em mais de 130 anos, houve apenas três ministros negros no Supremo.


Se depender de Lula, isso vai demorar para mudar. O presidente escolheu 11 mulheres para um Ministério de 37 pastas, mas não tardaria a rifar duas delas no primeiro estremecimento da sua base de apoio no Congresso. Parte daquelas que restaram precisou enfrentar o esvaziamento das prerrogativas de suas pastas, incluindo Marina Silva (Meio Ambiente) e Sonia Guajajara (Povos Indígenas), ou, pela falta de recursos ou de iniciativas concretas do governo, resume suas atividades a eventos, grupos de trabalho e alguns esquálidos projetos – é o caso de Anielle Franco (Igualdade Racial) e Margareth Menezes (Cultura). Não raro Lula reforça, em derrapadas retóricas, seu apego a premissas machistas, e é bom lembrar que o PT apoiou uma anistia aos partidos que não cumpriram regras de cotas de candidaturas femininas.


Ou seja, para Lula, as demandas da esquerda identitária lhe servem na exata medida de seu potencial eleitoral, seja para conquistar votos, seja para constranger adversários. No mais, Lula só tem uma causa: o poder.



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