Sem prejuízo ao reconhecimento do papel recente do Supremo Tribunal Federal (STF) na guarda da democracia, é dever voltar a apontar a reiteração de distorções como a invasão de competências e iniciativas inadequadas de membros da Corte. Mais autocontenção e recato fariam bem à própria instituição.
O mais recente episódio de usurpação de funções se deu com o julgamento no STF sobre a descriminalização do porte de maconha e a fixação de 40 gramas como o limite para diferenciar usuários de traficantes. Reacende-se um atrito desnecessário com o Congresso, poder que detém a legitimidade de legislar, concorde-se ou não com o caminho percorrido por deputados e senadores acerca do tema.
O mais recente episódio de usurpação de funções foi o julgamento no STF sobre descriminalização do porte de maconha
O Senado aprovou em abril a chamada PEC das Drogas e, na quarta-feira, em reação ao movimento do Supremo, a Câmara instalou comissão especial para analisar o texto. A PEC considera crime o porte de quaisquer substâncias ilícitas, inclusive a maconha, mas prevê que usuário não será penalizado com o encarceramento. Repete a Lei Antidrogas, de 2006. Pode-se argumentar, com razão, que a emenda à Constituição em análise deixa a desejar na falta de uma diferenciação objetiva entre usuários e traficantes. Isso leva a uma discricionariedade que, ao longo do tempo, tem causado mais prisões de jovens negros e de periferias. Mas preencher esta lacuna é papel do Congresso, eleito pelo povo. Cabe à sociedade pressionar pelo aperfeiçoamento.
Em meio ao voluntarismo do STF, surgiu um clarão de sensatez emanado do ministro Luiz Fux. Ele lembrou que, em regra, é o parlamento que trata do assunto em outros países. Referiu “vozes mais ou menos nítidas e intensas de que o Poder Judiciário estaria se ocupando de atribuições próprias dos canais de legítima expressão da vontade popular, reservadas apenas aos poderes integrados por mandatários eleitos”. E completou: “Nós não somos juízes eleitos. O Brasil não tem governo de juízes”. No mesmo dia, o presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, admitiu que a última palavra sobre a matéria deve ficar com o Congresso.
Também depõe contra a imagem da Corte o evento anual realizado em Portugal, chamado Fórum Jurídico de Lisboa. O encontro é organizado pelo IDP, faculdade de propriedade do ministro Gilmar Mendes. Altas autoridades do Executivo, do Congresso, do Judiciário e grandes empresários atravessam o Atlântico para discutir problemas do Brasil. Neste ano, apenas de órgãos públicos é uma caravana estimada em 160 pessoas. Parte tem a viagem custeada pelos contribuintes, mostram portais de transparência. Mas ainda hoje não há clareza sobre quem paga passagens e estadia de alguns convidados.
A edição de 2024 começou na quarta-feira e se encerrou ontem. Participaram como palestrantes representantes de 12 grandes companhias com ações no STF. Alguns desses processos são relatados por Gilmar Mendes. Abre-se grande espaço para se perguntar se não há conflito de interesses. Os maiores interessados em não abrir brechas para a imparcialidade de suas decisões ser questionada deveriam ser o próprio STF e seus membros.
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