A PEC n.º 45, de 2019, autodesignada 'reforma
tributária', é um exemplo eloquente de diagnóstico mal formulado e tratamento
inadequado
Reforma é, compreensivelmente, uma palavra mágica que
mobiliza sentimentos de esperança ante o eterno desconforto do presente, ainda
que, a rigor, não queira dizer absolutamente nada, porquanto implica enorme
diversidade de perspectivas e arranjos.
Há, entretanto, quem condicione investimentos à consecução
das “reformas”, mesmo que não saiba quais são elas. É uma espécie de
sebastianismo redivivo, que cultua a redenção por práticas salvacionistas e
prospera em contexto que encerra frustração, desinformação, interesses
dissimulados e manipulação intelectual.
Esse quadro se ajusta bem à nossa crônica indisposição
para refletir sobre problemas e, em seguida, eleger soluções jurídica e
economicamente consistentes e menos custosas, inclusive na perspectiva
política.
No âmbito tributário, temos sido vítimas frequentes de
diagnósticos errados e tratamentos excessivos (overdiagnosis and overtreatment,
na linguagem médica). Ensina o pensador italiano Michelangelo Bovero, em
entrevista ao Valor de 12.9.2014: “O remédio pode ser pior que a doença.
Medicina, em grego, é fármacon. E o primeiro significado de fármacon é veneno”.
A PEC n.º 45, de 2019, autodesignada “reforma
tributária”, é um exemplo eloquente de diagnóstico mal formulado e tratamento
inadequado.
É indiscutível que o sistema tributário brasileiro tem
problemas, como de resto todos os sistemas tributários do mundo, em todo o
tempo. Afinal, eles resultam de embates parlamentares, que envolvem conflitos
de razão e de interesse. Derivam, portanto, da inevitável imperfeição dos atos
humanos.
Essa constatação não autoriza, todavia, imobilismo e
conformismo, mas racionalidade, prudência e pragmatismo.
No caso específico, cabe refletir se as soluções
apontadas cuidam dos problemas prioritários, sem criar novos problemas. As
dificuldades para pagar impostos, que qualificam o Brasil em aviltante condição
nos relatórios Doing Business do Banco Mundial, não decorrem da natureza dos
tributos, mas principalmente de sobrecarga burocrática, notadamente as
obrigações acessórias. Pretextar essas dificuldades para propor reforma de
tributos é exercício de lógica borrada.
Os litígios, que espantam os investidores estrangeiros e
perfazem valores que ultrapassam a metade do PIB, tampouco têm a ver com a
natureza dos tributos. Resultam das gritantes disfunções do processo tributário
e da incúria na resolução de temas controversos ou de baixa densidade
normativa, como planejamento tributário abusivo, substituição tributária, ágio,
etc.
Os problemas do ICMS, PIS/Cofins e ISS têm solução, sem
que se apele para construções disruptivas e sem perder de vista as questões
tributárias contemporâneas decorrentes da revolução digital, globalização e
práticas predatórias dos paraísos fiscais.
A PEC n.º 45 é um elefante em loja de louças. Dispõe
sobre mais de 150 dispositivos na Constituição e no Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT), com prazo final de implantação de 50 anos
e prazos de transição de 2 e 10 anos. Alguém, em sã consciência, pode afirmar
que daqui a 50 anos existirão impostos tal como hoje conhecemos?
Ofensa ao pacto federativo, cláusula pétrea insusceptível
de emenda constitucional, vem sendo suscitada por eminentes tributaristas, aos
quais me associo, como Hamilton Dias de Souza, Heleno Torres, Humberto Ávila,
Roque Carrazza, Ricardo Lodi Ribeiro, Roberto Quiroga, Roberto Wagner Nogueira,
Tathiane Piscitelli. Já aí se avista um litígio de grandes proporções.
A esse litígio se juntariam inúmeros outros, em desfavor
da combalida segurança jurídica, a exemplo dos que decorreriam de novos
conceitos, como as pitorescas “alíquotas singulares”, que refazem vinculações
que a própria proposta extingue, e os que se deduziriam da instituição de um
“comitê gestor” do tributo, com competência para expedir normas que usurpam
funções do Poder Legislativo e, quem sabe, almejando converter-se no quarto
ente federativo.
Um consolo para os articulistas: a PEC reúne um enorme
potencial de críticas que não se esgotam em um artigo.
Consultor tributário, foi secretário da Receita Federal
(1995-2002)
Este senhor foi o próprio leao por muito tempo e olha aonde chegamos. Agora chegou o momento de fazermos algo, de pelo menos desburocratizar um pouco. Mas por óbvias razoes os consultores tributários nao tem nenhum interesse nisso.
ResponderExcluir