Dois pesos, duas medidas, por Renato Sant'Ana

A TV exibia uma reportagem sobre um jogador de futebol (que por decoro 

não nomearei), com aqueles pormenores da vida privada que a crônica 

esportiva chama de extracampo: muito dinheiro gasto com frivolidades, 

festas, orgias, excessos, a total falta de regras. Nem tudo era dito. Mas a 

imaginação sacava os detalhes... O telespectador sabia que era um moço 

nascido na favela, que, por ser um jogador talentoso, ganhara uma fortuna e 

que, precocemente, era o retrato da decadência.

Foi então que um camarada meu, quebrando o silêncio, fez um comentário: 

"Esse cara vai voltar pra favela. E é bem feito!".

Surpreso com aquele juízo sumário, perguntei: "bem feito por quê?". A 

resposta veio de bate-pronto: "Ele teve todas as oportunidades na vida. Um 

cara que já jogou na seleção, que ficou rico e famoso, que se tornou um ídolo, 

só de palhaço põe tudo a perder. Tem mais é que se ralar!".

O tempo passou. Mas a memória - que costuma atuar por conta própria e liga 

o que foi dito ontem com o que se diz hoje -, havendo registrado aquele 

momento, permitiu uma comparação. O mesmo sujeito agora fala com 

simpatia e leniência sobre um vídeo no qual Chico Buarque, em tom de 

gracejo, relata que foi um delinquente na juventude, quando era dado a 

roubar carros e, não raro, depredá-los apenas para divertir-se.

Achei estranho. É que o meu implacável amigo logo soube de que lado ficar: 

acha muito natural tanto os desvios da juventude quanto, frise-se, as atitudes 

atuais do nosso menestrel das ditaduras. Para ele, a delinquência do Chico 

Buarque é mera garotice, algo como tocar a campainha do vizinho e se 

esconder.

Não, eu não estou julgando o Chico. A questão é a parcialidade do nosso 

aprendiz de inquisidor, que aplica dois pesos, duas medidas. Para com um 

jogador que só fez mal a si mesmo, ele é inclemente; do ex-favelado, do 

pobre-diabo - que ganhou dinheiro e fama, mas que nunca deixou de ser 

pobre-diabo -, de um espírito que não teve qualquer polimento ele cobra. Ou 

mais que isso, quase lhe roga uma praga, parecendo animado ao prever a 

ruína do infeliz.

Já de um Chico Buarque ilustrado, bem-nascido, que teve um pai culto e 

biblioteca em casa, aluno das melhores escolas, que estudou na Europa, que 

jamais soube o que é passar privações, dessa vestal socialista ele nada cobra, 

nada censura. Antes, é para com ele muito condescendente. E tudo perdoa, 

ao ponto de justificar e achar engraçada a conduta antissocial que ele teve na 

juventude.

Eu nada tenho a dizer sobre o adolescente filho de Sérgio Buarque. Mas não 

posso ignorar que o incensado compositor (que, aliás, usa a sua notoriedade 

para fazer apologia de ditaduras como Venezuela, Nicarágua, Cuba etc.) 

contou tudo como se fosse a coisa mais natural do mundo. Talvez porque, 

embora idoso, em matéria de política e de crítica social, Chico segue com as 

mesmas crenças imaturas dos seus 20 anos.

Não sei se o meu camarada percebe que se contradiz. Mas sei por que é que 

ele mede Chico Buarque com a régua da exceção: é por identidade 

ideológica. Os dois se dizem de esquerda: são da mesma tribo... É o caráter 

identitário da ideologia. Assim, para ele é indiferente: o que quer que Chico 

Buarque faça sempre merecerá uma absolvição sumária.

Acho que meu amigo, com seu cérebro tribal, não capta que toda ideologia 

é só um montão de crenças e refrões e nenhum conteúdo conceitual: apenas 

um ideário raso para engrupir as massas. E não vê que, em sua cabeça, há 

duas aberrações cognitivas: tratar como se existisse abuso do bem e abuso 

do mal; e julgar conforme a pessoa, não conforme o fato.

Por fim, falemos de consequências. Institucionalizado o modo de julgar da 

sua tribo (dois pesos, duas medidas), o que se tem é uma espécie de 

hermenêutica da parcialidade e do favoritismo, típica do "direito 

inquisitório", que, gostem ou não, é o sistema que vigora nos regimes 

socialistas - jamais contrariando interesses das elites vermelhas. É a total 

negação da democracia, cuja substância é o "direito acusatório", sistema que, 

diferente do outro, valoriza a imparcialidade em juízo, o que implica "ampla 

defesa" com garantia do “direito ao contraditório".

É nisto que dá ter uma bandeirinha, seja ela clubística, ideológica ou 

corporativa: o discernimento falha e o equilíbrio vai pelo ralo.

Renato Sant'Ana é Advogado e Psicólogo.

E-mail: sentinela.rs@outlook.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário