A TV exibia uma reportagem sobre um jogador de futebol (que por decoro
não nomearei), com aqueles pormenores da vida privada que a crônica
esportiva chama de extracampo: muito dinheiro gasto com frivolidades,
festas, orgias, excessos, a total falta de regras. Nem tudo era dito. Mas a
imaginação sacava os detalhes... O telespectador sabia que era um moço
nascido na favela, que, por ser um jogador talentoso, ganhara uma fortuna e
que, precocemente, era o retrato da decadência.
Foi então que um camarada meu, quebrando o silêncio, fez um comentário:
"Esse cara vai voltar pra favela. E é bem feito!".
Surpreso com aquele juízo sumário, perguntei: "bem feito por quê?". A
resposta veio de bate-pronto: "Ele teve todas as oportunidades na vida. Um
cara que já jogou na seleção, que ficou rico e famoso, que se tornou um ídolo,
só de palhaço põe tudo a perder. Tem mais é que se ralar!".
O tempo passou. Mas a memória - que costuma atuar por conta própria e liga
o que foi dito ontem com o que se diz hoje -, havendo registrado aquele
momento, permitiu uma comparação. O mesmo sujeito agora fala com
simpatia e leniência sobre um vídeo no qual Chico Buarque, em tom de
gracejo, relata que foi um delinquente na juventude, quando era dado a
roubar carros e, não raro, depredá-los apenas para divertir-se.
Achei estranho. É que o meu implacável amigo logo soube de que lado ficar:
acha muito natural tanto os desvios da juventude quanto, frise-se, as atitudes
atuais do nosso menestrel das ditaduras. Para ele, a delinquência do Chico
Buarque é mera garotice, algo como tocar a campainha do vizinho e se
esconder.
Não, eu não estou julgando o Chico. A questão é a parcialidade do nosso
aprendiz de inquisidor, que aplica dois pesos, duas medidas. Para com um
jogador que só fez mal a si mesmo, ele é inclemente; do ex-favelado, do
pobre-diabo - que ganhou dinheiro e fama, mas que nunca deixou de ser
pobre-diabo -, de um espírito que não teve qualquer polimento ele cobra. Ou
mais que isso, quase lhe roga uma praga, parecendo animado ao prever a
ruína do infeliz.
Já de um Chico Buarque ilustrado, bem-nascido, que teve um pai culto e
biblioteca em casa, aluno das melhores escolas, que estudou na Europa, que
jamais soube o que é passar privações, dessa vestal socialista ele nada cobra,
nada censura. Antes, é para com ele muito condescendente. E tudo perdoa,
ao ponto de justificar e achar engraçada a conduta antissocial que ele teve na
juventude.
Eu nada tenho a dizer sobre o adolescente filho de Sérgio Buarque. Mas não
posso ignorar que o incensado compositor (que, aliás, usa a sua notoriedade
para fazer apologia de ditaduras como Venezuela, Nicarágua, Cuba etc.)
contou tudo como se fosse a coisa mais natural do mundo. Talvez porque,
embora idoso, em matéria de política e de crítica social, Chico segue com as
mesmas crenças imaturas dos seus 20 anos.
Não sei se o meu camarada percebe que se contradiz. Mas sei por que é que
ele mede Chico Buarque com a régua da exceção: é por identidade
ideológica. Os dois se dizem de esquerda: são da mesma tribo... É o caráter
identitário da ideologia. Assim, para ele é indiferente: o que quer que Chico
Buarque faça sempre merecerá uma absolvição sumária.
Acho que meu amigo, com seu cérebro tribal, não capta que toda ideologia
é só um montão de crenças e refrões e nenhum conteúdo conceitual: apenas
um ideário raso para engrupir as massas. E não vê que, em sua cabeça, há
duas aberrações cognitivas: tratar como se existisse abuso do bem e abuso
do mal; e julgar conforme a pessoa, não conforme o fato.
Por fim, falemos de consequências. Institucionalizado o modo de julgar da
sua tribo (dois pesos, duas medidas), o que se tem é uma espécie de
hermenêutica da parcialidade e do favoritismo, típica do "direito
inquisitório", que, gostem ou não, é o sistema que vigora nos regimes
socialistas - jamais contrariando interesses das elites vermelhas. É a total
negação da democracia, cuja substância é o "direito acusatório", sistema que,
diferente do outro, valoriza a imparcialidade em juízo, o que implica "ampla
defesa" com garantia do “direito ao contraditório".
É nisto que dá ter uma bandeirinha, seja ela clubística, ideológica ou
corporativa: o discernimento falha e o equilíbrio vai pelo ralo.
Renato Sant'Ana é Advogado e Psicólogo.
E-mail: sentinela.rs@outlook.com
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