A lambança do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF)
Marco Aurélio Mello a poucos minutos do expediente de fim de ano do Poder
Judiciário, ao tentar soltar 169 mil presos condenados pós-segunda instância,
entre eles Lula, despertou mais uma vez a fúria popular. E com ela emergiu
também a criatividade das fórmulas desejadas para substituir a atual indicação
de seus componentes pelo presidente da República, com aval do Senado Federal
após sabatina. Eleição direta dos ministros, concurso público para admissão e
indicação por notáveis ou mesmo associações da classe jurídica são, entre elas,
as mais citadas.
Como dizia minha avó, ‘devagar com o andor, que o santo é
de barro’. E seguindo instruções de Jack, o Estripador, ‘vamos por partes’.
Quem tem conhecimento mínimo do resultado de eleições diretas, principalmente
para ocupantes de colegiados, como o Congresso Nacional, as Assembleias
Legislativas e as Câmaras Municipais, não pode nutrir a mínima esperança de que
o voto direto livre os tribunais superiores dos vícios de sempre com a escolha
dos mais sábios e mais justos. Concurso público pode escolher mais membros com
mais conhecimentos para lidarem com informações sobre determinada área, mas não
há prova, oral ou escrita, que escolha entre os pares o mais habilitado a
dirimir questões sobre a adequação de determinada lei ao texto constitucional
vigente. Não há notáveis ou instituições isentas da interferência de lobbies e
que tais na escolha de um profissional para ocupar um cargo de tal relevância e
que representa o mais elevado posto na carreira de um profissional do Direito.
A vida do protagonista citado no início deste texto dá a
oportunidade de indicar caminhos mais seguros para levar gente mais capacitada
e equilibrada para ocupar o topo. Marco Aurélio Mello é o exemplo perfeito de
como o patrimonialismo atravessou incólume todas as tentativas de superá-lo e
resiste, como entulho, no terreno das instituições republicanas, acentuando
suas imperfeições e demolindo a reputação de seus agentes. Ele entrou na
carreira pública como procurador na Justiça do Trabalho, invenção de Getúlio
Vargas depois da Revolução de 1930, para funcionar como elo no aparelho de
poder de um tipo de populismo latino-americano, o trabalhismo. Uma espécie de
fascismo cucaracho, também estrelado por Juan Domingo Perón, na Argentina, e
Haya de la Torre, no Peru.
O cargo não foi
obtido por concurso público, mas por nomeação patrocinada pelo pai, Plínio
Affonso de Farias Mello, patrono até hoje reverenciado no ambiente do
sindicalismo patronal como uma espécie de benemérito da classe dos
representantes comerciais. O prestígio de Plínio Mello era tal que o último
presidente do regime militar, João Figueiredo, manteve aberta a vaga no
Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro para o filho dele, Marco,
completar 35 anos, em 1981, e com isso cumprir preceito legal para assumi-la. O
prestígio paterno levou-o ao Tribunal Superior do Trabalho, em Brasília, onde
Fernando Affonso Collor de Mello o encontrou para promovê-lo – tcham, tcham, tcham,
tcham! – para o Supremo Tribunal Federal (STF).
Neste caso, em que se entrelaçam parentela, compadrio e
interesses corporativos, Fernando merece citação especial, pois seu avô
materno, Lindolfo Collor, revolucionário de 1930, foi ministro do Trabalho. É
também uma história com marcas de chumbo e sangue: Arnon, pai do ex-presidente,
irmão de Plínio e tio de Marco Aurélio, atirou em Silvestre Péricles de Góes
Monteiro, seu inimigo em Alagoas, no plenário do Senado e matou, com uma bala
no coração, o acriano José Kairala, que entrou na tragédia como J. Pinto
Fernandes, citado no último verso do poema Quadrilha, de Carlos Drummond de
Andrade: ‘que não tinha entrado na história’. É um caso comum na era dos
‘pistolões’ e pistoleiros.
No STF Marco Aurélio sempre foi voto vencido e um
espírito de porco até que encontrou um rumo depois que a ex-presidente Dilma
Rousseff nomeou sua filha Letícia desembargadora no Tribunal Regional da 3.ª
Região, no Rio, demonstração de como o nepotismo se perpetua. Foi desde então
que o campeão das causas perdidas abraçou cruzadas que atendem aos interesses
petistas e aos de nababos da advocacia de Brasília, que defendem a troco dos
dólares que ganharão, quando for, se é que vai ser, extinta a jurisprudência
que autoriza a prisão de condenados em segunda instância. Foi em nome dela que
cometeu o tresloucado gesto.
O antagonista no episódio, Dias Toffoli, presidente do
STF, mas adepto da mesma cruzada, até tentou ser juiz por concurso, mas foi
reprovado em dois. Como defensor de José Dirceu e do PT e advogado-geral da
União de Lula, contudo, ascendeu ao cargo que hoje ocupa. O posto, aliás, já
tinha pertencido antes, com graves danos para a Constituição, rasurada por ele
na ocasião do impeachment de Dilma, a Ricardo Lewandowski. Este foi nomeado
pelo quinto constitucional para o Tribunal de Alçada Criminal por indicação de
seu então chefe, Aron Galant, prefeito de São Bernardo do Campo. Extinto o
órgão, foi transferido para o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e
chegou ao STF por mercê de suas ligações de compadrio e amizade com o casal
Marisa e Lula da Silva. O monturo patrimonialista só será desmanchado se forem
fechadas a porta dos fundos do STF, pela qual entram os quintos, e a Justiça
trabalhista.
Este conto de trancoso terá um final feliz se loucuras
como a de Marco Aurélio e do desembargador Rogério Favreto, do Tribunal
Regional Federal da 4.ª Região, em Porto Alegre, não forem sequer tentadas.
Toffoli marcou a sessão plenária do STF para decidir sobre a jurisprudência da
possibilidade de prisão em segunda instância para 10 de abril. Mas só haverá
solução final se Bolsonaro e Moro levarem à aprovação do Congresso uma lei para
determiná-la. O resto é lero.”
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