Por Renato Sant'Ana
O pior nas ditaduras é o medo que faz a maioria calar o que pensa e muitos se apressarem em mostrar que apoiam as ideias alentadas pelo regime. Quem não entende isso não decifra o que o politicamente correto faz com a cabeça das pessoas. E vice-versa. Foi o que pensei quando li o que escreveu o jornalista Fabrício Carpinejar sobre Vinicius Júnior (jogador de futebol). Ele acha que o atleta merece o Prêmio Nobel da Paz por sua reação a "manifestações racistas". E chega a compará-lo com Luther King e Mandela. Fará sentido? Vamos ver o que ensina a História.
Em 15/09/1963, militantes da Ku Klux Klan explodiram uma bomba numa igreja de Birmingham, no Alabama, EUA, matando quatro meninas (negras) e deixando 20 feridos. No funeral das garotas, Martin Luther King - líder negro e apóstolo da paz - falou a uma multidão consternada. Mas, em vez de incitar o ressentimento, ele disse: "Apesar desta hora sombria, não devemos perder a fé em nossos irmãos brancos."
Que resultado trouxe a liderança amorosa de Luther King? Dou só duas pistas. Nos anos que se seguiram a 1963 e antes que findasse o século XX, a cidade de Birmingham teve três prefeitos negros. E, em 2008, os Estados Unidos elegeram o presidente Barack Obama, um homem negro.
Foi por seu eficaz combate ao racismo liderando a resistência não violenta, que Luther King ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1964.
Também na linha da resistência não violenta e ostentando a bandeira da reconciliação, Nelson Mandela venceu o Apartheid, isto é, a segregação e subjugação dos não europeus instituídas como norma oficial na África do Sul. Preso em 1963, passou 27 anos na prisão, a maior parte do tempo nas condições mais degradantes. No entanto, ao ser libertado, não buscou vingar-se, mas optou por fomentar a conciliação entre negros e brancos. Conseguiu pacificar seu país. E recebeu o Nobel da Paz em 1993.
Dizia ele: "Ninguém nasce odiando outra pessoa por causa da cor de sua pele, da sua origem ou da sua religião. Para odiar, é preciso aprender. E, se podem aprender a odiar, as pessoas também podem aprender a amar."
Em 2009, Henry Louis Gates, um homem negro e, notem bem, professor de Harvard, voltando de viagem, não conseguiu abrir a porta de sua casa. Com ajuda do motorista, começou a forçar a porta. Apareceu uma viatura da polícia e o professor acabou preso por James Crow ley, um policial branco. Gates acusou racismo. Crow ley alegou ter sido ofendido pelo professor. O fato ganhou notoriedade. E Barack Obama (o presidente negro) telefonou para os dois, ligou também para o vice-presidente Joe Biden e os quatro tomaram uma cerveja nos jardins da Casa Branca num momento belo de reconciliação.
Livre de ressentimentos, Obama compreendeu que brancos e negros podem, sim, aprender a se olhar como semelhantes e criar laços fraternos.
Não há dúvidas de que Luther King e Mandela espelharam-se no exemplo do Mahatma Gandhi. Foi por meio da resistência não violenta que Gandhi liderou a campanha de independência da Índia, que era colônia do Reino Unido. Ele seguia um preceito hoje ostensivamente desprezado pelos ditos movimentos identitários: "odiar o pecado e não o pecador". Incapaz de odiar os britânicos, Gandhi declarou: "Minha ambição é nada menos que converter as pessoas britânicas à não violência, e, assim, lhes fazer ver o mal que fizeram para a Índia."
Será difícil admitir? Não foi com ressentimento, foi na chave da não violência e do não revanchismo que Nelson Mandela, Martin Luther King e o Mahatma Gandhi transformaram mentalidades, causaram mudanças profundas em seus respectivos países e espalharam a semente da paz mundo afora.
Isso não tem conexão com o que Carpinejar escreveu. Tanto que se fica com a impressão de que ele não conhece Mandela nem Luther King, com quem ele comparou o atleta. A bronca do jornalista está em que o jogador não recebeu a Bola de Ouro, prêmio para o melhor da temporada. Ele julga isso injusto. É uma opinião. Respeite-se. Não é aí que está o nó. Seu equívoco é a ilação que tira e a comparação que faz.
Embora usando de subterfúgio para dizê-lo, ele acha que houve "boicote à postura política contra o racismo de Vinicius Júnior". Como pode tirar tal ilação? Será que ele conhece o fluxo de consciência dos jurados que deram o prêmio a outro? Caso haja certeza da injustiça, será possível apontar a motivação? Aliás, quando tanto se diz que o futebol está por demais mercantilizado, não podem haver "outros interesses" por trás?
Fique claro, não é exigível que Vinicius Júnior reaja deste ou daquele modo. A questão é que Carpinejar, querendo equipará-lo a mestres da não violência, transcreveu palavras do jogador que revelam uma conduta que conflita com o propósito de reconciliação de Luther King e Mandela. São palavras exaltadas, revanchistas e provocadoras que não trazem mínima possibilidade de reconciliação nem de mudar percepções.
"Aceitem, respeitem ou surtem. Eu não vou parar. Dizem que felicidade incomoda. A felicidade de um preto, brasileiro, vitorioso na Europa incomoda muito mais. Mas repito para você, racista: eu não vou parar de bailar. Seja no sambódromo, no Bernabéu ou onde eu quiser", disse ele.
Dá para imaginar o Mahatma Gandhi, Luther King ou o amadurecido Mandela com essa atitude? Teriam eles assim mudado seus países? Repito, não cabe exigir isso ou aquilo do jogador. Mas de um jornalista é, sim, exigível que seja analítico em vez de esmerar-se em ser fofo e falar só o que os outros supostamente querem ouvir. Claro, pôr em dúvida algo que pretende impor-se como unanimidade dá trabalho, implica enfrentar a patrulha do politicamente correto e requer elaboração. Mas é aí que está a grandeza.
Vimos três líderes melhorarem o mundo por meio da não violência e da busca de reconciliação. Quando foi que se viu dar bom resultado atacar estupidez com estupidez, burrice com burrice, violência com violência?
Não há por que pôr em dúvida se Vinicius Júnior tem um coração bondoso. Nem se questiona a boa-fé com que ele coloca parte de sua fortuna num instituto que oferece "um programa de educação antirracista para alunos de escolas públicas", coisa elogiada por Carpinejar. Só que, por trás de tudo isso, está um conhecido e rancoroso refrão: "não basta ser contra o racismo, tem que ser antirracista". Acaso existe o ódio do bem?
Condicionem o cérebro de alguém a ser antirracista e ele vai achar que o mundo se divide entre bons e maus, entre não-racistas e racistas, ele será incapaz de perceber a diferença entre um idiota que grita insultos no campo de futebol e os facínoras da Ku Klux Klan, e vai aceitar sem filtro ideologias pró-totalitarismo, que é a pior espécie de ditadura.
O jornalista pode incensar o jogador. Pode curvar-se ao politicamente correto. É livre. Mas não pode brigar com os fatos: o que ele quer ver premiado com o Nobel da Paz nada tem a ver com o ideal pelo qual viveu e morreu Gandhi, com a abnegada e amorosa obra de Luther King, nem com a bandeira empunhada por Mandela na democratização de seu país.
Não sei se vai dar Prêmio Nobel. Só sei que não é com ressentimento nem com provocações e gritos de guerra que se constrói a paz: a estratégia testada e mais eficaz de promover a paz é a da reconciliação.
Renato Sant'Ana é Advogado e Psicólogo
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