Cachorros na sala de aula
Por Renato Sant'Ana
Não há nada mais desagradável no convívio social do que um imbecil deslumbrado consigo mesmo. Mas, vamos a coisa mais alegre.
Falando aos berros com o magnífico labrador deitado no tapete a seus pés a olhá-lo com olhos meigos, o dono vociferava: "Belíssimo cão! Bicho mimoso! Animal sagaz! Fique aqui!" E com um gesto enérgico apontava a porta. E o cachorro erguia-se de um salto e saía assustado.
Depois, com voz doce, no tom mais amorosamente paternal, ele falava: "Cachorro estúpido! Seu infame detestável! Some daqui, infeliz, que te arrebento a pontapés!", e estalava o dedo. O cão regressava ao tapete felicíssimo e parecia enamorado de seu dono.
Os dois já partiram. E aquela bem-humorada brincadeira é lembrada como um experimento informal, que uma estagiária de 20 anos viria a definir assim: "Cachorros fazem interpretação semântica."
Com efeito, o cão entendia o tom das palavras, não a sua literalidade. E aquela era a evidência de uma interessante técnica de manipulação.
Quando entrei na faculdade, embora não compreendendo bem o fenômeno, vi professores aplicarem a mesma técnica com os patetas, isto é, todos nós, pouco mais do que adolescentes empolgados e sem rudimentos críticos.
Eram os anos 1980. E os professores, com raras exceções, seguiam um protocolo: ocupar o mais do tempo a falar mal de "o sistema", o que implicava exaltar certos cretinos e diabolizar uns quantos que eles rotulavam de "conservadores".
Seria mera omissão? Eles esqueciam que "pensar", em termos acadêmicos, é "explicitar pressupostos". "Como assim?"
Quem falasse "democracia", "liberal", "conservador", por exemplo, deveria explicitar que conceito de "democracia", "liberal" ou "conservador" estava utilizando: a sala de aula não é mesa de bar em que cada um diz o que lhe dá na telha e qualquer patacoada é lícita.
Os professores não explicitavam o conceito. E o alunato ficava como o cachorro do experimento: captava a mensagem que vinha no tom das palavras; assimilava a repulsa que os professores transpiravam; e acabava detestando os (desconhecidos) "conservadores".
"Mas o que é um conservador?" Ninguém indagava! E se alguém fizesse a pergunta, haveria uma inversão de papéis: alguns professores ficariam com cara de cachorro que corre latindo atrás do carro e não sabe o que fazer quando o motorista resolve parar o veículo...
Aquele bem-humorado experimento e a confusão conceitual promovida em sala de aula vieram-me à lembrança quando, há pouco, vi um cinquentão (aliás, formado numa universidade federal!) "pagar um mico" ao misturar conservadorismo com nazismo, verdadeiro "samba do articuladinho doido".
Candidamente, ele afivelou na cara uma expressão de ironia desdenhosa para teatralizar uma superioridade intelectual que só existia na fantasia do seu autodeslumbramento.
Ora, conservadores repudiam qualquer forma de autoritarismo, o que inclui ideologias totalitárias como o nazismo. E ele não sabia...
Cheguei a pensar em sugerir-lhe um livro de João Pereira Coutinho: "As ideias conservadoras explicadas a revolucionários e reacionários". Só que, aí, quem ia "pagar um mico" era eu! É inútil indicar livro a quem falta coragem para ter dúvidas.
É bom saber que, às vezes, ser imbecil e portar-se como cachorro ao não ligar para os conceitos é, conscientemente ou não, questão de escolha. E um contraveneno para essa defecção da personalidade está no aforismo de Guimarães Rosa: "Quem desconfia fica sábio."
Renato Sant'Ana é Advogado e Psicólogo.
E-mail: sentinela.rs@outlook.com
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