Rafaela Rojas BarrosAdvogada é autora de “Abandono Afetivo da Pessoa Idosa e Exclusão da Herança” (ed. Dialética).
Este artigo está publicado na edição deste final de semana de Zero Hora. A leitura é para assinantes. O editor é assinante do jornal.
Popularmente, muito se fala sobre desamparo de pessoas idosas. No campo jurídico, já é bastante difundido o entendimento de que o abandono permite reparação na esfera civil. Tal conclusão é calcada no reconhecimento doutrinário e jurisprudencial da evolução do valor do afeto nos tribunais do país, especialmente em discussões envolvendo indenização, a exemplo da extraída de acórdão paradigmático (2012) da lavra da ilustre gaúcha ministra Nancy Andrighi, no qual foi reconhecido que a quebra de cuidado implica ilicitude sob a forma de omissão, sendo o cuidar elemento integrante da função parental, ensejando, na ruptura desse dever, responsabilização monetária.
No campo do Direito das Sucessões, contudo, pouco se discute quanto às consequências do abandono afetivo da pessoa idosa (leia-se: quebra do dever constitucional de cuidado – artigos 229 e 230 da Constituição Federal). Assim sendo – ressalvada a hipótese de atentado contra a vida –, deveria ser incontroverso que o abandono afetivo de pessoas idosas é tão ou mais grave do que casos outros previstos em lei para a deserdação, como a ofensa física, a injúria grave ou mesmo as relações ilícitas com a madrasta ou com o padrasto. Exemplifico: o abandono afetivo, além de cruel e indigno, pode vir a agravar quadros depressivos e levar, ao fim e ao cabo, ao abreviar da vida.
Todas aquelas hipóteses estão positivadas no Código Civil como autorizadoras da deserdação, que nada mais é do que a possibilidade legal de excluir herdeiro necessário (no caso, descendente) que cometeu atos socialmente reprováveis contra o autor da herança, através de testamento válido.
Não deveria ser possível afirmar, então, que a deserdação abrange, de algum modo, situações de abandono não menos reprováveis socialmente e que podem colocar a pessoa idosa em uma posição ainda mais vulnerável?
Infelizmente, quando se trata de pessoas idosas (grupo legalmente destinado à proteção preferencial) deparamos com o engessamento da lei sucessória nesse particular. O artigo que autorizaria a deserdação por abandono afetivo dispõe que é possível deserdar herdeiro necessário somente quando tal desamparo ocorrer “em face de ascendente em alienação mental ou grave enfermidade”. Ou seja, não protege a pessoa idosa (60 ) saudável, mas fragilizada emocional e/ou fisicamente, uma vez que a pessoa idosa em alienação mental, por exemplo, teria reduzida ou retirada a capacidade de firmar um “testamento válido”.
Não se pode ignorar a realidade sobre o processo crescente de envelhecimento e, consequentemente, de abandono de pessoas idosas no país. Em 2025, o Brasil ocupará o 6º lugar no mundo com o maior número de pessoas idosas. Sob tal realidade, no mais das vezes invisibilizada por ocorrer na privacidade dos próprios lares, é necessário desenvolver maior consciência social.
O anacronismo entre tão palpável realidade e a legislação ainda vigente, que completa mais de um século sem qualquer mudança significativa no seu texto, é latente.
Inobstante o gradual movimento em prol da tutela da pessoa idosa e a riqueza de debates acerca do tema, ainda carecemos de comando legal expresso que garanta a autonomia, a autodeterminação e a dignidade a essas pessoas quando violado o direito constitucional de amparo. O que há, hoje, é a ausência de responsabilização sucessória dos filhos que abandonam os pais na velhice, carência ou enfermidade, em desrespeito ao dever – constitucional – de cuidado, o qual deve orientar a leitura de todo o arcabouço legislativo e jurisprudencial de tutela da pessoa idosa.
É imprescindível, cada vez mais, construir soluções que protejam a pessoa humana em sua integralidade, máxime nessa quadra da existência, o que impõe repensar as consequências da quebra do dever (amplo) de cuidar, não apenas no aspecto indenizatório, mas de proteção da pessoa idosa e de respeito à autonomia da sua vontade.
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