Artigo, Paulo Delgado, Estadão - Enquanto agonizo
O que ‘o líder’ quer é fugir da responsabilidade
confinado na condição de perseguido
Ele se amontoa sobre o país. Hiperrealiza seus desejos,
usa aliados como escória. Sem álibi, mandou o genro do compadre desqualificar a
acusação, e deu errado. Segue trabalhando mal o luto. Um voo tão alto, uma
queda tão grande. Revelou-se político de comodidade, tirou vantagem da
desonestidade e alega princípios para abafar inconveniências. Chegou ao limite
de querer aproveitar da própria decadência.
Um grupo e ele saem do Fórum seguindo na direção do
passeio. Embora vários do cortejo sejam mais altos e estejam à frente dele,
qualquer pessoa que os observe do outro lado da rua pode ver a cabeça dele
ultrapassando por uma cabeça a dos seus apoiadores. Não é perspectiva, é
subalternidade. Lembra livro de Willian Faulkner, Enquanto Agonizo, onde um pai
brutal impõe a todos um enterro sem fim, não deixando a vida de ninguém fluir
sem ter de pensar no seu egoísmo doentio.
A calçada, esturricada pelos pisões do povo e pedras
soltas, segue reta como um fio de prumo até o pé do avião emprestado onde ele
os deixará, indiferente aos terrenos resvalantes que o levaram a escorregar.
Antes de embarcar, mirando o dilúvio, determina: meu reino por minha
vitimização, façam ferver o coração, vai ser longa a condolência. Preparem o
caixão e, se der certo, enterrem, com a toga preta do Supremo, o princípio da
igualdade de todos perante a lei.
Alguns aliados não aduladores sentiram que havia alguma
coisa ruim. Nem em silêncio era razoável aquela insensatez de celebrar como
triunfo uma calamidade. Nem apropriado apiedar-se de um político mais que do
povo. Uns diziam que era anomalia necrológio de homem vivo; outros, que não se
chama crime de perseguição; todos julgavam sinistro candidato cuja glória é ser
condenado por mentir.
Ele estava se esvaziando rapidamente. Um tique nervoso,
fruto de soberba banal, o levava a referir-se a si mesmo na terceira pessoa.
“Não há qualquer rival de ‘o líder’ em todo o firmamento.” Era assim mesmo que
se chamava, “o líder”, apelido privado que incorporou ao nome, marca da sua
ambiguidade pública.
Como numa piada, arrumou advogado na ONU. Sentia-se um
país. Não queria mais suar. Botaram na cabeça dele que se é vontade de Deus que
as pessoas tenham opinião diferente sobre honestidade não cabe a ele discutir
desígnios divinos. Suas proezas entardeceram e começaram a alimentar uma ordem
política incapaz de produzir valores sociais. Vazio, deixou-se preencher pelo
maior valor do mundo moderno, o ouro de tolo, que lambuza no presente a
consequência do futuro.
Quando mais se encheu de medalhas, mas se esvaziou de
ideias. “A abundância de diploma acaba com o diploma”, alguém alertou, e foi
expulso da sala. E uma pessoa vazia na política não é mais um político.
Enchendo-se de autoelogios e fúria, logo ele não sabe se é ou não é, ou que é
que de fato é. Saiu do trilho, aumentou necessidades, até que as dádivas deram
por conhecidos seus favores.
Enfraqueceu a autoridade por seu abuso e o hábito de
confundir poder com relação e intimidade. No mundo das decisões apressadas,
dissimulações, das interdições sobre as quais ninguém tem domínio, da liberdade
irresponsável de ser o que você quiser ser, a transgressão percebeu a melhor
das convergências. Com a autoridade participando, o erro ganha mais velocidade.
Seu talento para a evasão o tornou conhecido como aquele
político “veloz estruturador de negócios e soluções”. Logo que recebeu a
resposta da carta enviada aos brasileiros donos de banco, escrita em inglês,
percebeu que pecado-salvação é mera questão de palavra. Harmonizou-se com a
parceria de talentosos ocultadores de intenções para montar as ladainhas, a
lenga-lenga a que deu o nome de política de governo.
Quando a Justiça abriu a porta dos seus transtornos
desesperadores, ele já havia caído na mais sedutora armadilha da política
atual, o dinheiro fácil, e não quis reconhecer o que fez. Saiu em desespero
para pagar a promessa de 40 anos atrás. Mas sem dizer o que deveria ter dito ao
juiz – o que o deteria na certeza de que alcançar seu objetivo primordial de
ser respeitado, ser alguma coisa nova, é que compunha seu élan vital –
pressupôs que a condição de vítima evitaria o caminho da desmoralização. Ele
voltou a suar, como se estivesse espumando, feito um cavalo desembestado,
convocou adoradores, dependentes, para a velha modalidade de ação heroica –
camisa de partido, candidatura, comício, farisaísmo – na tentativa desesperada
de incinerar a sentença e botar fogo na pavorosa jornada da Justiça de ousar
apontar o dedo para quem sempre fez o que quis e nunca foi tão adequadamente
contrariado.
Quando ouviu “estamos aqui e você tem de lidar conosco”,
percebeu que escondera dos amigos o que os inimigos já sabiam. Falhou em grandeza,
foi-se a profecia. Quem dera fosse capaz de suportar o sucesso com mais
honestidade e a adversidade com mais autocontrole.
Um partido de esquerda moderno e com capacidade de
diálogo deve parar de tratar de forma errada o erro. E reconhecer que um
período de governo com um presidente deposto, três ex-presidentes da Câmara,
senadores e inúmeros ministros de Estado presos ou processados, dirigentes
partidários e governadores confinados ou envolvidos, a maior empresa do País
dilapidada, a autoridade olímpica nacional presa, o bilionário do período
encarcerado, a Copa investigada, fundos de pensão arruinados, o BNDES um clube
de amigos, grandes empresários condenados, frugal intimidade com ditadores,
etc., não foi um período virtuoso.
O que “o líder” quer é o refluxo da identidade perdida,
fugir da responsabilidade confinado na condição de perseguido. Pelo alto,
espalha simulacros de habeas corpus, certo de que a Justiça dos privilegiados
prevalece e o ressuscita, como Lázaro. Por baixo, mantém agitada a agonia,
seguro de que a manipulação do povo reabsorve a desordem que ele criou e a
dissolve na sociedade até sumir sua autoria.
* Sociólogo, é copresidente do Conselho de Economia,
Sociologia e Política da Fecomercio-SP
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