A desigualdade social e o desmazelo geral estão nos tornando
um país estúpido, violento e cruel
Duvido que algum país tenha um número de irresponsáveis
por metro quadrado comparável ao nosso. Baseando o cálculo só no circuito
institucional sediado em Brasília, excluindo o resto do País, nossa vantagem
sobre o resto do mundo nesse quesito deve ser acachapante.
Para bem aquilatarmos a extensão da coisa, tanto faz
começarmos pelo lado grotesco – lagostas, vinhos de qualidade, auxílio-paletó,
auxílio-moradia – ou pelo lado teratológico, quero dizer, pelo contingente de
26 milhões de pessoas sem trabalho, por nosso sistema educacional, horroroso
nos três níveis, pela corrupção de proporções amazônicas, pela taxa de
homicídios subindo de patamar e agora, para nosso infinito espanto, pelo
rompimento de barragens causando danos irreparáveis a algumas de nossas mais
importantes bacias hídricas. Culpa de Deus? Não, culpa da ignorância técnica,
da falta de fiscalização e do desprezo pela natureza e pela vida das
coletividades que vivem nas proximidades. A verdade é uma só: a desigualdade
social e o desmazelo generalizado estão nos tornando um país estúpido, violento
e cruel.
Se nossa renda por habitante crescer 1,5% este ano (o que
não é trivial) e essa taxa se mantiver por um longo período, levaremos 47 anos
para dobrá-la e alcançar o nível que Portugal já hoje desfruta. Repito: 47
anos. Essa projeção macabra deveria ser suficiente para mudar as atitudes e
padrões éticos dos donos do poder. Deveria ser uma espada de Dâmocles obrigando
os três Poderes a se levarem mais a sério e a tratar com respeito os 207
milhões de habitantes deste país “abençoado por natureza”. O que vemos
acontecer diuturnamente em Brasília dista anos-luz desse mandamento elementar.
Só consigo compreender a lerdeza (pirraça, fisiologismo,
falta de vergonha...) com que a reforma da Previdência é tratada por grande
parcela do Congresso a partir da ignorância de muitos a respeito do futuro que
nos aguarda. A referida parcela simplesmente não compreende que essa reforma é
apenas o primeiro passo numa dura série de mudanças que teremos que fazer, de
um jeito ou de outro. De reformas muito mais drásticas do que essa que temos
sobre a mesa poderá depender, quem sabe, até nossa sobrevivência como entidade
nacional integrada.
Não me deterei nos prós e contras do governo Bolsonaro,
assunto martelado diariamente na imprensa e nas redes sociais. Não sei se ele
adotará ou não um estilo consentâneo com a magistratura a que foi alçado e com
a gravidade da crise em que os governos anteriores nos meteram. Quero apenas lembrar
que a eleição já passou, que os palanques já foram ou deveriam ter sido
desmontados e que a presente hora tem de ser de distensão e pacificação, não de
mais acirramento.
A História do Brasil não é o oito ou oitenta que tantos
se comprazem em trombetear. Erramos muito, mas também acertamos bastante.
Tivemos muito azar em algumas ocasiões, mas outras houve em que Deus deu
realmente a impressão de ser brasileiro. Veja-se a preservação da integridade
territorial, que nos proporcionou esse que talvez seja o maior dos nossos
ativos: nossa dimensão continental. É certo que, em nosso caso, a unidade não
foi suficiente para alicerçar um mercado interno robusto; seria demais esperar isso
no nível de pobreza prevalecente quando nos livramos do regime colonial. De
1930 a 1980, nossa economia cresceu vigorosamente. Naquele período poderíamos
ter constituído um mercado interno respeitável e não o fizemos, agora, sim, por
uma imperdoável sequência de erros, a começar pelo modelo de crescimento
concentrado no Estado, trampolim para a obscena consolidação de uma casta
patrimonialista no topo da pirâmide política, reforçada pela trincheira
geográfica que Brasília passou a proporcionar-lhe.
Parece-me, pois, que o alfa e o ômega da
irresponsabilidade política brasileira é essa incapacidade infantil de perceber
o inferno a que inexoravelmente chegaremos se reformas drásticas não forem
efetivadas. Um ponto de partida conveniente para quem tiver ânimo e coragem
para abrir os olhos é relembrar o que aconteceu nas três últimas décadas do
século 19 nos três casos clássicos de “industrialização tardia” – ou seja, na
Alemanha, no Japão e nos Estados Unidos. Firmar a unidade territorial e
construir um poder central digno de respeito foram a condição sine qua non para
constituir o mercado interno, base do crescimento industrial acelerado que
esses três países conheceram. A Alemanha, além de uma reforma administrativa
admirável, iniciada no começo do século 19, levou a cabo a unificação em 1870.
Sob a égide da Prússia e a liderança de Bismarck, os 40 principados então
existentes se uniram no que viria a ser uma formidável potência industrial. No
Japão, a restauração da dinastia Meiji levou ao poder uma nova elite que
rapidamente quebrou o sistema feudal, desarmou a corporação dos samurais,
padronizou o sistema educacional em nível nacional e abriu rapidamente o país
para o exterior, em busca de tecnologia. Não menos impressionante, nos Estados
Unidos a drástica reorientação do sistema educacional no sentido tecnológico,
por meio dos land-grant colleges, e a sangrentíssima guerra de 1861-1865 contra
o sul escravocrata fincaram os pilares do espetacular crescimento econômico na
quarta parte do século.
No Brasil, a dificuldade é escolher qual o melhor exemplo
de infantilidade e irresponsabilidade. Minha inclinação é a organização
partidária. A proliferação desabrida não seria tão grave se o resultado dela
fosse apenas nominal, mas não é o caso: analisada como um número de partidos
efetivos, nossa estrutura partidária é, nada mais e nada menos, a mais
fragmentada do planeta.
Vinte e seis milhões de pessoas sem trabalho ficam sem
saber se é para rir ou para chorar.
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