"Faltam apenas dez anos para a universalização do saneamento e as cidades gaúchas precisam agir imediatamente ", alerta especialista
Yves Besse vê um cenário desafiador para os pequenos e médios municípios na busca por universalizar os serviços de água e esgoto até 2033
Faltando dez anos para o final do prazo para que os municípios universalizem os serviços de água e esgoto, cidades do Rio Grande do Sul se mobilizam em busca de alternativas sustentáveis para viabilizar os grandes investimentos necessários. Especialista em saneamento, com mais de 25 anos de atuação na área e com a experiência de ter passado por grandes companhias mundiais, especialmente na França, país que é referência na prestação desses serviços, Yves Besse enxerga um cenário desafiador no Estado.
Segundo o presidente da Cristalina Saneamento, presta-se um serviço deficiente no fornecimento de água potável, e o percentual de esgoto tratado é “extremamente baixo”. É possível, no entanto, cumprir o prazo legal de universalizar esses serviços até 2033, previsto no novo Marco Regulatório do Saneamento.
Para superar esses desafios, os municípios devem se estruturar imediatamente, alerta Yves Besse. Alternativas existem, mas as soluções precisam se adequar às necessidades locais.
Confira a entrevista a seguir:
Qual é a importância da universalização dos serviços de saneamento? Como a falta dele afeta a vida das pessoas?
Os serviços de saneamento representam vida, humana, animal e vegetal. Sem água de qualidade, não há vida. E sem esgotamento sanitário, não há água de qualidade. Cada vez mais, percebemos que o principal problema no Brasil, o país mais rico em água doce do mundo, não será a falta de água — e, sim, a falta de água de qualidade, ou seja, não poluída pelo uso humano, industrial e agrícola.
Quais são as características dos serviços de saneamento em pequenas e médias cidades do Rio Grande do Sul? Que realidades são as mais comuns de encontrarmos?
A realidade mais comum encontrada nesses municípios é de uma população não atendida em esgotamento sanitário e mal atendida em água potável. São basicamente duas situações diferentes: os pequenos e médios municípios, que deveriam ser atendidos pela Corsan (a grande maioria), são abandonados à sua própria sorte, principalmente em esgotamento sanitário, apesar da sua população pagar a tarifa mais alta do Brasil. E há os municípios que são atendidos por autarquias municipais e que não conseguem cumprir com a obrigação de fornecer os serviços de maneira sustentável a toda a sua população e que cobram geralmente tarifas simbólicas e não sustentáveis.
Muito se fala da sustentabilidade financeira dos serviços em cidades com essas características. Quais são as alternativas de modelos de operação mais adequadas a essas realidades?
Sempre digo que saneamento é um direito humano. Porém, diferentemente de um direito cívico, é um direito social, ambiental e econômico. Sem considerar o aspecto econômico do saneamento, não haverá possibilidade de abordar seus aspectos sociais e ambientais. É exatamente o que vemos hoje. Portanto, o primeiro passo para viabilizar o saneamento é analisar qual é o modelo econômico sustentável para levar água e esgoto a todos.
Não tenho dúvida de que, hoje, entre os diferentes modelos existentes — prestação direta municipal, parceria público-privada administrativa, concessão parcial de esgoto, contrato de performance e locação de ativos — o melhor modelo é a concessão plena de água e esgoto. Os demais são apenas paliativos, e não sustentáveis, para levar adequadamente e com rapidez o saneamento a todos.
Porém, para viabilizar uma concessão plena, é fundamental que ela tenha viabilidade política e legitimidade junto à população, a partir de uma comunicação franca e transparente e de uma estruturação técnica, operacional, jurídica, legal, social, ambiental, econômica e financeira profissional. É um tema complexo que deve ser enfrentado com muito conhecimento e expertise para seu sucesso, e não de maneira superficial e demagógica, com belos discursos.
É possível universalizar o acesso ao saneamento até 2033 como prevê o novo marco regulatório? Quais são os principais entraves para que isso aconteça?
Sim, é possível, porém para isso seria preciso iniciar imediatamente, o que não está acontecendo. Infelizmente, ainda há muito discurso e pouca ação. Vimos, nos últimos dois anos, belos projetos regionais sendo implementados, no Rio de Janeiro, Alagoas e no Amapá. Porém, ainda é insuficiente.
Tivemos, nas últimas semanas, um caso muito emblemático. Pomerode, cidade catarinense com uma população de menos de 35 mil pessoas, fez um leilão para a concessão de serviços de água e esgoto. O processo iniciou em 2013 com uma PMI e foi paralisado em 2014. O município retomou os estudos em 2019 e conseguiu lançar uma licitação em setembro de 2022, encerrada em dezembro de 2022. A vencedora do certame, além de dar um desconto de 15% sobre a tarifa atual, ofereceu mais de R$ 60 milhões de outorga, para ter o direito de operar os serviços por 35 anos e investir R$ 150 milhões para universalizar a água e o esgoto dentro da meta do novo marco regulatório. Não sabemos por quanto tempo o setor privado estará disposto a aportar valores tão significativos para esse tipo de projeto, principalmente com o discurso do futuro governo federal.
Isso nos mostra que há a necessidade de estruturarmos mais projetos municipais e regionais com mais qualidade e mais celeridade e que os principais entraves são os belos e falsos discursos que usam o saneamento para fazer política, e não a política para fazer saneamento.
De um lado temos os estados e suas companhias, que, apesar de incapazes de cumprir com suas obrigações, não querem largar o osso. Do outro, os municípios, os responsáveis pelos serviços, que têm muitas dificuldades política, jurídica, técnica e financeira para estruturar boas soluções.
Que cidades ou regiões, em outros países, são exemplos de operação exitosa no saneamento básico? Que lições esses lugares nos deixam?
Temos bons exemplos, principalmente em países desenvolvidos, com modelos de prestação pública ou privada, dependendo muito da qualidade e das regras da gestão pública, assim como da disponibilidade de recursos públicos. Nos Estados Unidos, por exemplo, os serviços foram universalizados a partir de prestação direta municipal e recursos públicos federais a fundo perdido, algo que é possível somente em países ricos.
Na Inglaterra, País de Gales e Chile, os serviços foram universalizados a partir de um modelo de privatização. Já na Escócia, na Alemanha e em Portugal, o modelo privilegia grandes companhias públicas regionais. Nos países nórdicos e na Itália, o modelo é mais municipal, enquanto, na França e na Espanha, o modelo é mais de delegação ao setor privado. Na China, o modelo é mais estatal, com parcerias público-privadas. Em Cuba, o modelo é de parceria entre o governo e empresas privadas.
Ou seja, não existe um modelo único. Porém, existe uma realidade única mundial, liderada pelos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, de um nível de atendimento muito ruim, semelhante ao do Brasil e de modelos, na sua grande maioria públicos, com uma participação privada muito pequena.
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