Embu das Artes tem duas faces – ou duas almas, não sei.
Aprimeiraéa deu ma cidade do interior, típica da primeira expansão paulista,
com sua praça central, sua igreja centenária e suas ruas herdadas das estradas
abertas pelos jesuítas e outros exploradores. Ao utraéa de um atípica periferia
metropolitana, com dezenas de bairros dormitório, mais ou menos sob controle de
empreendedores da ilegalidade e do clientelismo político “de esquerda”.
Separando as duas faces, que tentam ignorar-se sem sucesso, um alonga cicatriza
corta de leste a oeste: a Rodovia Régis Bittencourt, ou “a BR”, também
conhecida por seu trecho na Serra do Cafezal como rodovia da morte, testemunha
viva da incapacidade da Federação de atuar com um mínimo de decência em São
Paulo desde os anos 30 do século passado.
Subitamente, como um raio em céu já bastante anuviado,
Embu das Artes tornou-se, no palavrório repetitivo dos produtores de notícias,
o símbolo perfeito da situação de pré-falência do País. O que era um Janus, ser
mítico de duas cabeças, torna-se um Cérbero, o cão de três cabeças guardião da
entrada do inferno. E alguém duvida de que é para o km 280 da Régis que os
brasileiros estão olhando para compreenderem o que realmente se está passando e
tentarem prever o que lhes destina o futuro imediato de sua sobrevivência como
pessoas livres numa sociedade livre?
Não creio que tenha sido por acaso, dentre as centenas de
pontos de violação do direito à própria subsistência, impostos por uma massa
desorientada, por meio força e da ameaça de violência, que Embu das Artes se
tornou o símbolo acabado do desamparo da cidadania e da falta de empenho do
governo em governar. Como o restante do País, Embu das Artes tem sido governada
há mais de uma década pelo PT, cujo último candidato a prefeito teve sua
candidatura cassada pela Justiça, deixando o campo livre, nas eleições
municipais de 2016, para um candidato suspeito de pertencer ao PCC. Este,
condenado em segunda instância por crimes análogos aos imputados àquela
organização, evadiu-se antes da posse, mas foi brindado com um habeas corpus
emitido autocraticamente por um juiz do Supremo, conseguiu empossar-se e
governar. Durante o julgamento do pedido de habeas corpus para evitar a prisão
de Lula, o prefeito evadiu-se novamente e encontra-se foragido.
Desde a conclusão da alça sul do Rodoanel, a grande
conexão entre o tráfego do Norte, Nordeste e Centro-Oeste do País com o Sul é o
seu acesso à Régis no Embu, área abundante em extensas glebas disponíveis para
abrigar grandes entrepostos de logística, o que redundou num grande facilitador
do apoio logístico (e de inteligência) aos que ora ocupam a rodovia.
Coincidentemente, o apoio popular, em parte espontâneo, vem-se avolumando – já
que o antagonismo da população ao governo federal, e ao Estado em geral, é alto
e tende a se agravar. Assim sendo, uma vez que todos os motivos de queixa
podem, quase sempre com razão, ser atribuídos à desídia do Estado e de governos
passados, a rejeição ao atual aumenta exponencialmente, muitas vezes com razão.
Esse apoio espontâneo também se beneficiou da proximidade
de uma iniciativa da “sociedade organizada”, fortemente disciplinada e bem
doutrinada, afiliada ao MTST de Guilherme Boulos, postulante presidencial do
PSOL. Esses invasores, com apoio da prefeitura petista, vêm reivindicando a
posse de uma área para assentamento de sua clientela e têm apoiado os ocupantes
da rodovia.
Não estou sugerindo ter havido algum tipo de conluio
entre todos esses diferentes atores, mas essa não é uma condição necessária
para atuarem na mesma direção. Uma das mais antigas constatações dos conflitos
sociais é que diferentes atores, por diferentes razões, até mesmo
contraditórias – o que não é o caso aqui –, podem se opor ao mesmo adversário.
Foi assim, aliás, que diferentes atores sociais e políticos, por diferentes
razões e com diferentes objetivos, constataram que Dilma Rousseff já não estava
governando e agiram em conjunto para formalizar seu afastamento.
Ninguém entendeu os objetivos dos carreteiros e o governo
mobilizou todos os seus recursos exclusivamente para responder às suas demandas
explícitas. Ora, os fatos mostraram, até um dia após a capitulação do governo,
em 27 de maio, que cada vez que se satisfazia uma demanda surgiam outras, mais
ou menos disparatadas: manifestamente, nem os próprios carreteiros têm clareza
de seu objetivo, que, a meu ver, é sua própria sobrevivência, num cenário em
que foram estimulados a se endividar além de sua capacidade financeira para
atuarem num mercado artificialmente inflado, que os deixou indefesos quando o
mercado entrou em recessão. A sobrevivência e, logo, a natureza do movimento o
tornam inegociável e despreparado para planejar uma estratégia.
Ora, o movimento caracterizou-se como uma operação de
guerra com uma estratégia longa, minuciosa e competentemente planejada. É quase
ridículo atribuir a obstrução sistemática de muitas centenas de pontos de cerco
tático aos centros de produção e distribuição de combustíveis em todo o País a
um grupo de milhares de zappistas, por sua vez coordenados com os grupos
empresariais que compreendem 2/3 do transporte de cargas. Ninguém duvida de que
a comunicação via WhatsApp é intensa e fortalece a imobilidade, e a resistência
a inimigo comum mas, por isso mesmo, inviabiliza a ação concertada.
As autoridades precisam de uma estratégia, que não se
pode reduzir a atender às demandas do movimento, que jamais serão plenamente
satisfeitas, porque o que está sob ameaça é a sobrevivência da autoridade
pública e de uma sociedade livre. Para isso é preciso que o braço da lei recaia
com vigor sobre os que planejaram esta guerra e mobilizaram os compreensíveis
ressentimentos dos carreteiros autônomos para um conflito sem vencedores.
É preciso que o braço da lei recaia com vigor sobre os
que planejaram esta guerra
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