Tecnologia começa a ocupar o sono e pode virar novo
território para coleta de dados
Um amigo comprou há pouco uma dessas pulseiras digitais
que são usadas o tempo todo para monitorar dados de atividade física (quantos
passos você deu etc.) e também a quantidade e a qualidade do sono de cada
noite.
Enquanto você dorme, a pulseirinha fica analisando a hora
exata em que você apagou, quanto tempo ficou rolando na cama, quantas horas
teve de sono profundo, de sono leve e de REM (“Rapid Eye Movement”, fase dos
sonhos mais intensos).
Depois de analisar tudo isso, o aplicativo da pulseira
faz um ranking de quem dormiu melhor naquela noite, comparando todos os
usuários. No caso do meu amigo, na sua primeira noite com o aparelho, ele tinha
dormido melhor que 98% de todas as pessoas no país.
Considerando que ele estava na China, fiquei
impressionado com sua capacidade de dormir bem e, na mesma medida, preocupado
com a conquista do sono como novo território para a coleta de dados.
O fato é que as tecnologias de monitoramento do sono não
estão só nas pulseirinhas. Há também uma onda de colchões inteligentes,
conectados à internet. Um exemplo é o Eight Sleep. A ideia é um colchão que
manipula os ciclos do sono, permitindo que o dorminhoco possa dormir menos e
descansar mais, ganhando tempo para fazer mais coisas acordado.
O colchão monitora cada movimento, virada ou variação de
temperatura do corpo. No momento em que a pessoa está adormecendo, ele aquece.
Quando a pessoa adormece, ele diminui um pouco a temperatura, aprofundando
assim o ciclo de sono profundo (de acordo com o fabricante).
Para acordar, o colchão usa um alarme térmico: ele
resfria o corpo a até 12ºC para acelerar os batimentos cardíacos, levando ao
despertar sem ficar grogue. Tudo isso usando inteligência artificial.
O preço? Vai de US$ 2.000 a US$ 5.000 (de R$ 7.800 a R$
19,5 mil). Em uma entrevista à jornalista Arielle Pardes, da revista Wired, o
inventor da geringonça disse que o colchão permite dormir apenas seis horas por
noite, gerando “seis anos a mais acordado durante a vida”.
Os mais radicais podem optar talvez por um produto como o
Dreem, uma faixa cheia de sensores para ser usada na cabeça no estilo tenista
dos anos 1970. O aparelho promete “precisão de laboratório” no monitoramento do
sono.
Em vez de alterar a temperatura, o Dreem tem outra
estratégia. Usa efeitos sonoros para aprofundar o ciclo do sono. Por exemplo,
produz o “pink noise” (ruído rosa), que, segundo alguns estudos, é capaz de
ampliar as ondas cerebrais durante o sono profundo.
Todos esses produtos têm por característica o fato de
transformar a experiência privada do sono em um território público. Os dados
coletados por meio deles podem ser compartilhados, agregados, processados e
assim por diante.
Mais do que isso, trazem competição ao sono. Quem dorme
melhor? Como estou dormindo comparado aos meus vizinhos? Em outras palavras, a
tecnologia não só ocupa cada momento em que estamos acordados mas começa a
ocupar também o sono.
Acertou na mosca Jonathan Crary no livro “24/7: Capitalismo
Tardio e os Fins do Sono”, boa reflexão teórica sobre o tema, que ficou para
trás em face das práticas atuais. Preciso perguntar a meu amigo se ele continua
dormindo bem. Não vai ser surpresa se sua qualidade de sono tiver deteriorado
desde que comprou sua pulseirinha.
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