EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA CÍVEL DA COMARCA DE PORTO ALEGRE/RS: EMENTA: Ação Civil Pública por Dano Moral Coletivo. Desmerecimento da atividade policial e relativização dos efeitos deletérios de crimes graves, em programa radiofônico. Indenizabilidade do dano moral coletivo (art. 1º, inciso IV, da Lei nº 7.347/85). “O dano moral coletivo, aferível in re ipsa, é categoria autônoma de dano relacionado à violação injusta e intolerável de valores fundamentais da coletividade” (RECURSO ESPECIAL Nº 1.586.515 – RS, Rel. Min. Nancy Andrighi). Responsabilidade social dos meios de comunicação (Constituição Federal, art. 221, inciso IV). Liberdade de Imprensa e responsabilidade. O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, por seu agente signatário, no uso de suas atribuições legais e constitucionais, com amparo na Notícia de Fato nº 00829.000.901/2020, da Promotoria de Justiça de Defesa do Patrimônio Público de Porto Alegre, vem, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência ajuizar a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR DANOS MORAIS COLETIVOS, CONTRA RÁDIO GAÚCHA S/A, pessoa jurídica de direito privado, sociedade anônima fechada, concessionária de serviço público federal, CNPJ nº 90.721.994/0001-28, com sede na Avenida Ipiranga, 1075, Bairro Azenha, em Porto Alegre/RS; DAVID WAGENER COIMBRA, portador do CPF nº 415.408.830-00, nascido em 28.04.62, filho de Diva Maria Coimbra, domiciliado na Avenida Cai, nº 221, Bairro Cristal, CEP 90810-120, em Porto Alegre/RS, pelas seguintes razões de fato e de direito: DOS FATOS A) O FATO CRIMINOSO: O ASSALTO EM CRICIÚMA, NOITE DE 30/11/2020 A 01/12/2020 Entre a noite de 30 de novembro de 2020 e a madrugada de 1º de dezembro de 2020, em Criciúma, cidade ao sul do Estado de Santa Catarina, criminosos praticaram o maior assalto a banco da história daquela unidade da federação. O fato ainda está sendo investigado e ainda não há denunciados; há registros de que houve prisões e recuperação parcial dos valores subtraídos. Estima-se que os criminosos tenham logrado êxito em subtrair a quantia aproximada de 80 milhões de reais. Conforme a Polícia Civil de Santa Catarina, o crime foi praticado por 30 homens encapuzados, que atacaram o cofre da tesouraria regional do Banco do Brasil, no centro de Criciúma. A ação teve início por volta das 23h50 e durou cerca de duas horas. Durante o ataque, os criminosos trouxeram terror à população de Criciúma, sitiando a cidade, bloqueando ruas, provocando incêndios e tomando reféns. Um policial militar que entrou em confronto com a quadrilha, Jeferson Luiz Esmeraldino, 32 anos, foi atingido por um disparo de fuzil e segue internado até a data do ajuizamento da presente ação. A seguinte fotografia, compartilhada pela Internet, ilustra o desrespeito pela vida humana e a humilhação a que a população civil de Criciúma foi submetida: Na terça-feira, após a fuga, a Polícia de Santa Catarina encontrou os veículos usados pela quadrilha. Nove dos dez veículos eram blindados, e todos eram de luxo. Um dia depois, em Içara, a 9 km do local do crime, a polícia encontrou um galpão utilizado pelos assaltantes na madrugada do crime. Suspeita-se que o local tenha sido utilizado para pintar os carros usados pelos criminosos. Na quinta-feira, o Batalhão de Operações Especiais (Bope) encontrou, numa casa em Morrinhos do Sul (RS), roupas com sangue, munições de fuzil, celulares, chips de celular, tinta, acionador de explosivo e um furgão. Embora as investigações ainda não estejam concluídas, as características do crime revelam profundo desprezo pela vida humana e pela propriedade privada, além de uma organização sem paralelo, colocando em risco a ordem pública não só em Santa Catarina, mas em todas as cidades vizinhas. B) A CONDUTA DOS DEMANDADOS: O PROGRAMA TIMELINE, 02/12/2020 No dia 02 de dezembro de 2020, durante o programa radiofônico TimeLine, apresentado pelo demandado David Coimbra e pela jornalista Kelly Matos, transmitido pela Rádio Gaúcha, com sede em Porto Alegre, no horário das 10 às 11 da manhã, de segunda a sexta-feira, os apresentadores, a respeito dos fatos, teceram as seguintes considerações1 : Transcrição – Áudio David Coimbra e Kelly Matos David: É, sabe o que eu tava pensando Kelly: Tava pensando então nós vamos (...) se David tá pensando então atenção minha gente que vale o (...) David: Tu tá muito (...) só vejo tua sombra Kelly: Ô meu amor, é que aqui em casa só tem dois lugares pra gente sentar e hoje foi ocupado por Eduardo Gabardo então, fiquei na sombra né, dei a luz para esse homem maravilhoso, diga David. David: Tava pensando sobre os assaltantes de Criciúma, e que agora parece que repetiram lá no Pará, né? Kelly: Exatamente David: A mesma ação Kelly: A mesma estratégia, de amedrontar a cidade David: Mesmos modus operandi, isso, e aí eu tava pensando, esse tipo de assaltante, vamos supor que, todos os assaltantes fossem assim como esses aí né Kelly: Ousados, tu diz? David: O que é? Kelly: Ousados, tu diz? David: Não, nem ousados, organizados, é, tu vê que têm método e que mais que método tem respeito pelo cidadão, tu vê que eles, eles, eles tavam contando ontem que chegaram em um dos caras, um funcionário ali do banco e perguntaram ali, “quanto tu ganha?” Aí disse ali sei lá 2 mil, 3 mil reais, e ele respondeu, “viu, por isso tamo assaltando, não tamo tirando dinheiro de ninguém, tamo tirando o que é do banco”, deram uma explicação e uma 1 Os áudios estão fartamente compartilhados nas redes sociais, tais como Facebook, Youtube, Instagram. justificativa ideológica pro ato deles, então existe uma filosofia no assalto deles, e teve um vídeo que recebi que o cara tava filmando e o assaltante disse, “não filma”, e o cara disse, “desculpa”, o morador, e parou e disse “bah, ele viu e agora?”, e o cara não fez nada, apenas advertiu, pra que ele continuasse sua ação em paz, entendeu Kelly: (risadas) David: então tentaram, é verdade teve um policial que levou um tiro, um vigilante também, mas se não houvesse intervenção tudo seria na boa e esses assaltantes que nós temos que são assaltantes chinelos, que assaltando as pessoas em paradas de ônibus Kelly: Não, roubam tampinha que vai ser doada pra entidade, assaltam na missa, assaltam cabelo David: O cara assalto cabelo, tu viu? Kelly: Vi David: O cabelo, vê se tem cabimento Kelly: O instituto do câncer infantil recolhe, eu doei meu cabelo (...) David: Aí teve consciência e devolveu o cabelo Kelly: Devolveu, boto na sacolinha David: Então eu tô vendo que existe uma moral, existe um, tu vê, o cara do cabelo, por exemplo, pode ser um bom assaltante como esses daí, que não incomoda as pessoas, deu uns tiros é verdade, teve bomba, todo aquele negócio, mas eles fazem aquilo ali só pra pegar o banco, a instituição, entendeu, é aquele dinheiro que eles querem, não é algo contra o cidadão, tanto que deram dinheiro para as pessoas, eu vi o, os caras recolhendo dinheiro na rua, um dizia assim “eu tô rico” Kelly: (risadas) No que lembra La Casa de Papel David: “Deus existe”, o cara dizia (risadas) Kelly: No que lembrou, David tá fazendo, aliás, leiam a coluna de David, exatamente sobre isso, hoje, é o seriado, essa série famosa da Netflix, podemos mudar o jazz novamente, agora salto agora um jazz mais House of Cards, ou Game of Thrones, por favor, não sei se alguns tão com ..., porque, porque a série La Casa de Papel fala um pouco sobre criminosos com essa filosofia, eles não tão roubando do povo David: Isso Kelly: Eles tão roubando do, emitindo papel, emitindo dinheiro David: Eu me lembro Kelly, desculpa, é, que, que no acho que no filme Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia ou outro filme sobre as antigas guerrilhas urbanas que haviam no Brasil que assaltavam bancos, que chamavam de expropriações, o pessoal da guerrilha, e aí diziam “não, nós, nós tamo roubando dinheiro do banco que é dinheiro de ninguém” eles diziam, que é roubo, que, eu sei que tá errado, que sei que tá errado, sei que vai ter um monte de gente que vai dizer “que isso? tá incentivando, roubo de banco” Kelly: “Comunista, anarquista” David: Não é nada disso, eu quero que o pessoal que assalta as pessoas no carro, que entra em casas, que assalta as pessoas nas paradas, isso é bandido, tô falando agora pra você que é bandido, sabe, tome consciência, seja como os caras de Criciúma, que respeita a população, entendeu, a ação tem que ser pra outra, pra outros alvos, e não o pobre trabalhador, que tá ali todo dia, o cara assaltar um ônibus sabe, existe ética pra tudo Kelly Matos Kelly: Trabalhador pegou ônibus lotado, tá ali uma sardinha, tá ali no calor, esperou ônibus, chegou atrasado o ônibus, uma depressão completa sabe Davis, que o assalto ao banco central, filme que narra também uma ideia parecida, sei que nossa convidada tá na linha, ele diz assim, “crime não é roubar um banco, crime é fundar um banco” David: Olha aí, tá vendo, pra tudo tem que ter filosofia, justificativa, até pra roubo de banco Kelly: Mas vamos mudar jazz mais uma vez ... C) O PERFIL DOS DEMANDADOS: RÁDIO GAÚCHA e DAVID COIMBRA Nos meios abertos, na Internet e nos sites das instituições, pode-se apurar que a Rádio Gaúcha, detentora de uma concessão federal, “é uma emissora de rádio brasileira sediada em Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul. Opera no dial AM 600 kHz e FM 93.7 MHz, além de ondas curtas de 6020 kHz e 11915 kHz, tendo alcance a nível nacional. Pertencente ao Grupo RBS, é a cabeça de rede da Rede Gaúcha SAT, que detém mais de 160 emissoras de rádio espalhadas pelo país, além de três emissoras próprias no interior do Rio Grande do Sul, para as transmissões de diversos programas e jornadas esportivas que envolvem a Dupla Grenal. Seus estúdios ficam na sede do jornal Zero Hora na Azenha, juntamente com as demais emissoras de rádio do Grupo RBS. Seus transmissores para AM estão no bairro Ipê, em Guaíba, e os para FM no Morro da Polícia”. A Rádio Gaúcha, segundo informado por seus próprios jornalistas, é ouvida em todo o sul do país e é a líder de audiência em Porto Alegre. No perfil publicado no site “Portal dos Jornalistas”, consta que o demandado “David Coimbra nasceu no dia 28 de abril de 1962, em Porto Alegre (RS). Graduou-se na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PucRS), de Porto Alegre (RS), em 1984. Enquanto era estudante, trabalhou como assessor de imprensa da Livraria e Editora Sulina. Passou por diversas redações do Sul do País, entre elas os jornais Diário Catarinense (SC), o Jornal de Santa Catarina (SC), o Jornal da Manhã (SC), o Correio do Povo (RS) e o Jornal NH (RS), as rádios Eldorado (SC) e Guaíba (RS) e a tevê RCE TV (SC). Destacou-se pelo trabalho no Grupo RBS. Foi editor executivo de Esportes e colunista do jornal Zero Hora (RS), comentarista da TVCOM (RS) – onde participou do programa Café TVCOM -, nas rádios Gaúcha (RS) e Atlântida (RS) e no Blog do David Coimbra, alocado no portal clicRBS. Em julho de 2011, substituiu Ruy Carlos Ostermann na apresentação do programa Sala de Redação, mais tradicional programa da rádio Gaúcha. Passou a colaborar com o blog do programa Sala de Redação em junho de 2012, uma ampliação dos debates e das polêmicas do programa de rádio. Foi diagnosticado com câncer de rim em 2013. Submeteu-se a uma nefrectomia em Porto Alegre, mas, para tratar da doença, teve que mudar-se para Boston (EUA), para onde seguiu em junho de 2014. Instalou um estúdio na sua casa americana, de onde passou a comandar, em novembro do mesmo ano, com Kelly Matos e Luciano Potter, dos estúdios gaúchos, o programa TimeLine, nas manhãs da rádio Gaúcha. Em dezembro, passou a assinar uma coluna diária no jornal Zero Hora e no portal clickRBS. Participou do programa Pretinho Básico, da Rádio Atlântida, também do Grupo RBS”. D) A REPERCUSSÃO SOCIAL DAS DECLARAÇÕES DO DEMANDADO DAVID COIMBRA As declarações ofensivas e degradantes do demandado David Coimbra provocaram uma inaudita reação da sociedade do Rio Grande do Sul, seja por parte dos patrocinadores do Programa Timeline, seja por parte de entidades da sociedade civil. Até a data da elaboração da presente ação, foram colacionadas as seguintes manifestações e notas de repúdio: Hospital Ernesto Dornelles: Associação dos Bancos do Estado do Rio Grande do Sul (publicada na ZH, no dia 08 de dezembro de 2020): SEBRAE/RS: Santa Clara: Vinícola Salton: Polícia Rodoviária Federal: Biscoitos Zezé: Sinoscar, anunciante do Programa Timeline: Instituto Ipê Amarelo, voltado para ações de segurança pública, sediado em Lajeado/RS: Instituto Cultural Floresta (nota publicada no Facebook): DO DIREITO: A) A INDENIZABILIZADE DOS DANOS MORAIS COLETIVOS O conceito e a indenizabilidade do dano moral perpassam o texto da Constituição Federal, e são mencionados expressamente no art. 5º, incisos V e X, a saber, “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem” e “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Antes mesmo da Constituição de 1988, a Lei da Ação Civil Pública já criara os instrumentos próprios para a persecução dos danos causados não apenas a indivíduos isoladamente, mas também à sociedade como um todo, com a infração de interesses coletivos, difusos e transindividuais. A teor do art. 1º, inciso IV, VII e VIII, da Lei nº 7.347/85, “regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados ‘a qualquer outro interesse difuso ou coletivo’, ‘à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos’ e ‘ao patrimônio público e social’”. Não se desconhece que a entidade diretamente ofendida pelas declarações do demandado, os agentes da segurança pública, não se enquadra no conceito de “grupos raciais, étnicos ou religiosos”; no entanto, é de se registrar que o STF, recentemente, empregou interpretação extensiva para incluir dentro do próprio conceito de racismo da Lei nº 7.716/89, as condutas homofóbicas, o que também se justificaria no presente caso concreto: enquadrar os comentários ofensivos do demandado no inciso VII da Lei da Ação Civil Pública, sob o argumento de que se dirigiram a grupo que mantém entre si uma homogeneidade, qual seja, a sua função de garantir a segurança pública. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça admite a indenizabilidade do dano moral coletivo, tendo fixado a tese no sentido de que “o dano moral coletivo, aferível in re ipsa, é categoria autônoma de dano relacionado à violação injusta e intolerável de valores fundamentais da coletividade”. Em reiterados precedentes, o STJ excluiu da indenizabilidade por danos morais coletivos as meras violações contratuais ou de deveres legais, tais como a inclusão de cláusulas abusivas em contratos bancários. Deixou aberta, no entanto, a possibilidade de reconhecimento de danos morais coletivos punitivos nos casos de “violação injusta e intolerável de valores fundamentais da coletividade”. No caso concreto, os seguinte excertos permitem, sem sombra de dúvidas, extrair a intenção e o propósito do demandado de enaltecer a prática criminosa supostamente sem agressão aos cidadãos, e desmerecer a ação dos policiais militares que intervieram para impedir maiores dados à pessoa e ao patrimônio, a saber: “vamos supor que, todos os assaltantes fossem assim como esses aí né” (...); “tu vê que têm método e que mais que método tem respeito pelo cidadão” (...); “então existe uma filosofia no assalto deles, e teve um vídeo que recebi que o cara tava filmando e o assaltante disse, ‘não filma’, e o cara disse, ‘desculpa’, o morador, e parou e disse ‘bah, ele viu e agora?’, e o cara não fez nada, apenas advertiu, pra que ele continuasse sua ação em paz, entendeu” (...); “é verdade teve um policial que levou um tiro, um vigilante também, mas se não houvesse intervenção tudo seria na boa” (...); “pode ser um bom assaltante como esses daí, que não incomoda as pessoas, deu uns tiros é verdade, teve bomba, todo aquele negócio, mas eles fazem aquilo ali só pra pegar o banco, a instituição, entendeu, é aquele dinheiro que eles querem, não é algo contra o cidadão, tanto que deram dinheiro para as pessoas” (...); “pra você que é bandido, sabe, tome consciência, seja como os caras de Criciúma, que respeita a população, entendeu, a ação tem que ser pra outra, pra outros alvos, e não o pobre trabalhador” . Nos trechos destacados, o demandado acentua a alegada “gentileza” dos assaltantes, ao mesmo tempo em que, indiretamente, destaca a inoportunidade da ação policial, que, se não tivesse ocorrido, teria permitido a conclusão do assalto “na boa”. B) A RESPONSABILIDADE PESSOAL DO DEMANDADO DAVID COIMBRA, E A RESPONSABILIDADE DA RÁDIO GAÚCHA A responsabilidade do demandado David Coimbra decorre diretamente do art. 927 do Código Civil, a cujo teor “aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. O demandado manifestou a sua opinião, de forma livre e conforme os ditames da Constituição Federal; não há qualquer indicativo de que tenha sido induzido ou obrigado a proferir a opinião manifestada, não há registro de nenhuma reserva ou perturbação mental; porém, em paralelo com a liberdade de imprensa, corre a responsabilidade pelos abusos, objeto da presente ação. Não se desconhece que a jornalista Kelly Matos, durante a intervenção do jornalista David Coimbra, interveio com manifestações entrecortadas; no entanto, bem examinada a transcrição, não parece ter aderido integralmente aos infames comentários proferidos pelo demandado. Por tal razão, reputa o Ministério Público inviável colocá-la no polo passivo da presente ação; o propósito ofensivo e violador dos valores sociais, nas declarações do demandado David Coimbra, são inequívocos. Logo após os fatos, o Grupo RBS, a que está vinculado a Rádio Gaúcha, emitiu o seguinte e confuso comunicado: O grupo a que se vincula a Rádio Gaúcha qualifica o episódio como “lamentável”, mas, ao mesmo tempo, reforça que o jornalista não teve “intenção de minimizar a gravidade da ação criminosa e de ofender as empresas, os cidadãos e os policiais que foram feridos”. O grupo limita-se a pedir desculpas. A propósito, nos dias seguintes, o demandado David Coimbra também pediu desculpas publicamente, ressalvando, no entanto, que empregara uma ironia que não fora compreendida pelos leitores. Gize-se, por oportuno, que a ironia não foi compreendida não só pelos leitores, mas por boa parte dos anunciantes e por diversas entidades da sociedade civil. A teor do art. 932 do Código Civil, “são também responsáveis pela reparação civil: ‘III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele’”. Não há, na notícia de fato, registro sobre a natureza jurídica da relação entre a Rádio Gaúcha e o demandado David Coimbra; porém, é inequívoco que existe, entre ambos, uma relação de mando própria do emprego, o que a enquadra genericamente na hipótese do art. 932, inciso III, do Código Civil. A propósito, a reforçar a responsabilidade da Rádio Gaúcha pelos fatos, merece referência o que dispõe o art. 221, inciso IV, da Constituição Federal, a cujo teor, “a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios (...) respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”. Ao chancelar a conduta do seu empregado, limitando-se a um reticente pedido de desculpas num comunicado perdido na terceira aba de seu site institucional, a empresa demandada, por seus dirigentes, não foi capaz de avaliar a gravidade do fato e, nesse cenário, nada mais educativo do que a condenação a danos morais coletivos punitivos. C) A QUANTIFICAÇÃO DOS DANOS Em precedente recente a respeito dos danos morais coletivos, o STJ, por sua 3ª Turma, em caso relatado pela Ministra Nancy Andrighi, destacou as funções do reconhecimento do dano moral coletivo, a saber (RESP nº 1.586.515 – RS): “10. O dano moral coletivo é categoria autônoma de dano que não se identifica com aqueles tradicionais atributos da pessoa humana (dor, sofrimento ou abalo psíquico), mas com a violação injusta e intolerável de valores fundamentais titularizados pela coletividade (grupos, classes ou categorias de pessoas). Tem a função de: a) proporcionar uma reparação indireta à lesão de um direito extrapatrimonial da coletividade; b) sancionar o ofensor; e c) inibir condutas ofensivas a esses direitos transindividuais. 11. A grave lesão de interesses individuais homogêneos acarreta o comprometimento de bens, institutos ou valores jurídicos superiores, cuja preservação é cara a uma comunidade maior de pessoas, razão pela qual é capaz de reclamar a compensação de danos morais coletivos.” No caso em estudo, à míngua de maiores elementos para a quantificação do dano, mas levando em consideração os valores comumente aplicados para a indenização de danos graves de natureza pessoal e individual, o Ministério Público delimita seu pedido ao valor indenizatório de R$100.000,00 (cem mil reais) para cada demandado, totalizando, como valor da causa, a quantia de 200.000 (duzentos mil reais). DO PEDIDO: Ante o exposto, requer o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul: a) seja determinada a citação dos réus para respondam aos termos da presente ação; b) seja, no curso da ação, permitida a produção das provas admitidas em direito; c) sejam, ao final, os demandados condenados ao pagamento de indenização por dano moral coletivo, a ser revertido para o Fundo de Reparação dos Bens Lesados do Rio Grande do Sul ou para entidade pública ou privada do campo da segurança pública, no montante mínimo de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais). Atribui à causa o valor de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais). Porto Alegre, 10 de dezembro de 2020. Voltaire de Freitas Michel, Promotor de Justiç
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