Entrevista com o presidente da ANP. Jornal Valor do dia 6 de dezembro.


Valor: Qual o efeito do ataque dos EUA?
Décio Oddone: Durante décadas, as crises do petróleo criaram na economia, que geraram efeitos nefastos mundo afora. No Brasil, o reflexo mais importante disso foi a década perdida nos anos 1980 em função das duas crises do petróleo, em 1973 e 1979. Como isso é muito recente e está muito arraigado no pensamento das pessoas, não se percebe as mudanças estruturais que houve no mercado de petróleo nos últimos tempos. A partir da revolução do “shale” [petróleo não convencional] nos EUA, que ganhou força no fim da década passada, o quadro mudou completamente. Os EUA, que eram um grande importador de petróleo, tiveram um aumento brutal de produção, passaram a ser exportadores, e isso diminuiu a dependência americana do Oriente Médio. Ao mesmo tempo, houve aumento de produção de petróleo convencional em outros países, como o Brasil.
Antes havia um suprimento de petróleo muito concentrado no Oriente Médio. Mas abriram-se frentes de oferta em países com estabilidade política. Essa mudança toda geopolítica do petróleo fez com que hoje as crises não sejam tão agudas. O “shale” significa o fim do petróleo caro no longo prazo. A outra novidade no cenário global é a demanda. A transição energética não é uma opção, é um fato. A sociedade já decidiu consumir energia mais limpa. Esse crescimento das fontes renováveis vai impactar a demanda de hidrocarbonetos. A transição energética e o crescimento das renováveis trouxeram para o nosso horizonte o início da redução da demanda por petróleo.
Valor: Do ponto de vista geopolítico, qual a relação entre a morte de Qassem Soleimani e o ataque ás refinarias da Saudi Aramco?
Oddone: Essas crises de relações entre países geram instabilidade em um primeiro momento. Nesse caso [morte de Soleimani], ela gera também risco de aumento de ações terroristas e um risco de conflito mais longo e aberto. Mas esse não parece ser o cenário mais provável. O que o evento na Arábia Saudita em setembro mostrou foi um aumento do risco para o mercado de petróleo. Especialmente um aumento do risco concentrado nessas instalações que estão mais próximas das zonas de conflagração. Foi uma surpresa para a indústria um ataque com drones em instalações tão bem protegidas. Estávamos acostumados a pensar que, geopoliticamente, para se fazer um ataque daquelas proporções, para paralisar metade da capacidade de produção da Arábia Saudita em questão de horas, seria preciso uma força militar estruturada. Essa sensação de risco se confirmou agora com esse episódio no Iraque. É a continuação desse processo de aumento de risco, que traz em um primeiro momento aumento de volatilidade. Nesse caso novo, é mais provável que haja aumento de ações terroristas do que um conflito aberto e longo. Nesse cenário, o que vamos ver é volatilidade {[de preços], mas dificilmente vamos ter um choque de grande magnitude no preço}.
Valor: E quais os efeitos da crise entre EUA e Irã para o Brasil?
Oddone: Muita coisa mudou no Brasil desde os choques do petróleo. O Brasil era absolutamente dependente de petróleo importado. Importávamos 1 milhão de barris diários. Agora exportamos mais de 1 milhão de barris diários. Nos próximos dez anos, seremos um dos cinco maiores produtores e exportadores de petróleo. O impacto na balança de pagamento será muito grande e na receita pública também.
Estamos falando de possivelmente mais de R$ 300 bilhões por ano de arrecadação.
Em 2018, eram R$ 50 bilhões. Nossa matriz energética também se diversificou.
Nossa gasolina tem 27% de etanol. No diesel, são 11% de biodiesel. Como somos um país que exporta muito hoje e vai exportar muito mais ainda, o aumento do preço do petróleo aumenta a receita pública no Brasil. É bom do ponto de vista fiscal. Ele gera impactos negativos na economia, porque eleva o preço, tem inflação e aumento de custos. A novidade é que, pela primeira vez na história, o Brasil teria recursos, se quisesse, para mitigar esses efeitos. O aumento de arrecadação que vamos ter para cada aumento de dólar no preço do petróleo no mercado internacional é maior do que o custo que isso teria em reais para mitigar o impacto no diesel, gasolina e GLP {gás liquefeito de petróleo]. A pergunta que fica é: vale a pena, em um ambiente de transição energética, usar recursos adicionais para subsidiar combustível e dar sinal de preço equivocado a economia? Há países que fazem isso. Eu pergunto se existe algum desses que teve sucesso econômico.
Valor: Mas o consumidor não terá certeza de que o recurso será bem utilizado para outros fins.
Oddone: Sem dúvida. Mas aí é outra questão, aquela discussão interminável sobre a “maldição do petróleo”. Não existe maldição do petróleo. Existe má gestão. A novidade é que vamos ter dinheiro do petróleo. Se escolhermos fazer com esse dinheiro show de samba, festa de final de ano, pintar de dourado o calçadão, a culpa será do petróleo? A culpa será da má gestão. Compete a sociedade fiscalizar e se preparar para utilizar bem os recursos. É bem melhor ter dinheiro e escolher o que fazer do que não ter dinheiro.
Valor: O presidente Bolsonaro sinalizou que uma saída seria a redução do ICMS.
Isso é possível?
Oddone: É uma decisão política dos governadores. Se você quer discutir preço de combustíveis de maneira efetiva, não adianta discutir só a commodity. O problema é que temos a visibilidade dos preços das commodities, que a Petrobras se acostumou a divulgar. Mas isso é um terço [gasolina] ou metade [diesel] do preço. Precisamos também ter atenção com os outros dois componentes: os impostos e as margens de distribuição e venda.
Valor: O que pode ser feito com relação a tributos?
Oddone: O ICMS é muito ineficiente na forma que ele é aplicado. Os Estados estabelecem a alíquota de cobrança do ICMS. Para a gasolina, está na faixa de 25% a 34% do preço na bomba. No diesel, é de 12% a 25%. E no etanol, de 12% a 32%. O ICMS acelera movimento de preços na bomba. A cada 15 dias, os Estados fazem uma pesquisa de preços na bomba. Se o preço sobe, o governo reajusta o ICMS, para refletir o aumento. Quando o preço da refinaria ou de importação aumenta, e o dono do posto recebe aquele repasse e aumenta o preço na bomba, o governo estadual vai lá, faz uma pesquisa, vê que o preço na bomba subiu e aumenta o ICMS. Quando ele aumenta o ICMS, o dono do posto aumenta o preço de novo.
Daqui a 15 dias, o governo vê que o preço na bomba subiu de novo. E aí ele sobe o ICMS. Fica um ciclo de alavancagem de aumento de preço. Da mesma maneira, para baixo. Há um efeito nocivo de volatilidade na arrecadação estadual. Idealmente, o ICMS deveria ser, na minha opinião, um valor fixo, que o Estado poderia reajustar em determinado período. A principal medida que poderia ser feita para melhorar o ambiente do setor de combustíveis do Brasil seria uma reforma do ICMS, equalizando e estabilizando os valores.
Valor: Isso seria viável?
Oddone: Isso é uma decisão dos Estados. Algo mais amplo teria que ser um acordo no âmbito do Confaz [Conselho Nacional de Política Fazendária] ou a reforma tributária, que poderia endereçar esse tema.
Valor: A Petrobras disse que segue monitorando os preços internacionais, após o ataque dos EUA.
Oddone: A Petrobras é uma empresa que tem liberdade de atuação. E a liberdade de preços está dada pela lei. Na maior parte do mundo é assim, os repasses não são instantâneos.
Valor: Seria ruim controlar preços enquanto a Petrobras coloca á venda refinarias?
Oddone: Ninguém está falando de controle de preços no Brasil. Isso é página virada.
Valor: O senhor acha que a sociedade já entende dessa forma?
Oddone: Sim. Esse entendimento majoritário está presente. Também está começando a ficar presente o entendimento que são necessárias melhorias na forma que nós tributamos os combustíveis, especialmente o ICMS. Hoje ainda não temos um entendimento amplo de que é necessária também uma mudança no ICMS.
Valor: O governo, no último ano, se preocupou com uma possível reação dos caminhoneiros.

Oddone: Essa preocupação com os caminhoneiros é uma relação do governo na qual a ANP não tem envolvimento. Atuamos como órgão de consulta, de apoio nas questões relacionadas com combustíveis.
Valor: O que o senhor pensa sobre a recondução no cargo?
Oddone: Meu mandato não será renovado. Primeiro, sempre disse que não renovaria. E, segundo, porque não pode. A nova lei não permite isso e acho isso correto. Quando aceitei o desafio de vir trabalhar na ANP, no fim de 2016, vim com uma missão, que eu mesmo me impus, de contribuir para o processo de mudança profunda que vivemos no setor de óleo e gás nesses anos. A missão está cumprida.
Valor: O que acha da divulgação dos preços dos combustíveis hoje?
Oddone: Está bem melhor do que antes.
Valor: Está no ideal?
Oddone: O ideal é ter mais divulgação em mais pontos, mais competição. Mas isso é uma construção. Vamos chegar lá.


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