MATEUS BANDEIRA OCTOBER 07, 2021
É lugar-comum, nas análises sobre a cena político-partidária brasileira, a constatação da falta de identidade ideológica, ou mesmo programática, dos incontáveis partidos nacionais. Em sua maioria, um conjunto de lideranças regionais e interesses eleitorais localizados, reunidos sob uma sigla nacional e genéricas palavras de ordem – ou simples empreendimentos comerciais. Nesta generalização, é curiosa a situação do PSDB.
No espetacular filme Uma Mente Brilhante, de 2001, baseado no livro que conta a história do Prêmio Nobel de Economia de 1994, John Forbes Nash, e sua luta contra a esquizofrenia, existe uma passagem interessante: o matemático, já diagnosticado e consciente de sua doença, discute com um casal sobre a necessidade de seguir com seu trabalho de análises secretas em favor do governo americano. Este era o ponto. Seria o casal real ou fruto de sua enfermidade? Nash, interpretado por Russell Crowe (em atuação que lhe valeu a indicação ao Oscar de melhor ator), resolve o dilema a partir da observação sobre o não envelhecimento da jovem que compõe o casal. O tempo passava e ela não apresentava sinais de envelhecimento ou mudança de penteado. Ela era uma mentira de sua mente brilhante.
Durante o enfrentamento da pandemia que se abateu sobre todos nós – e as discussões sobre os diferentes métodos e procedimentos que cada um deveria seguir –, um detalhe chamou minha atenção: a uniformidade de comportamento, discursos e padrão das fotos dos governadores dos estados do Rio Grande do Sul e de São Paulo. Isolados, determinando o fechamento de todas as atividades consideradas não essenciais, suas aparições e imagens significavam a própria materialização da mensagem do discurso.
Solitários e à frente de seus computadores, transmitiam, com suas atitudes capturadas por distantes fotógrafos, o exemplo a ser seguido.
Entretanto, sem precisar lutar contra nenhuma esquizofrenia, fiquei curioso. Primeiro, pela similaridade da estética entre o governadores citados e, em segundo lugar, pelo detalhe de seus cabelos. Assim como a personagem que assombrava o professor Nash, os cabelos dos senhores mandatários também não cresciam. Por decisões governamentais, as barbearias e salões estavam fechados e as fotos mostravam governadores isolados do mundo. Não é necessário ter uma mente brilhante para concluir que em algum momento alguém transformava o corte dos cabelos palacianos em uma atividade essencial.
Entretanto, parece que as identidades não terminam por aí. Vamos aos fatos, em duas séries de acontecimentos.
A primeira: no ano de 2015, o parlamento gaúcho, por iniciativa do Executivo, aprovou uma elevação extraordinária de alíquotas de seu Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (sic), o popular ICMS, pelo prazo de três anos. Extraordinária porque temporária. Em 2018, fim do prazo das alíquotas majoradas, a pedido do então governador eleito, Eduardo Leite (PSDB), o extraordinário foi estendido, pelo mesmo parlamento, por mais dois anos, até 2020.
Em 2020, o Palácio Piratini, sede do Executivo gaúcho, encaminhou à nova composição da Assembleia Legislativa um projeto de lei, o PL 246/2020, que visava, fundamentalmente, prorrogar mais uma vez a majoração das extraordinárias alíquotas. Sem maioria para aprovar sua pretensão – um novo período, agora de quatro anos –, o governo gaúcho acatou uma proposta alternativa, de iniciativa do Partido dos Trabalhadores, e o aumento (ainda extraordinário) de alíquotas foi estendido por mais um ano. Agora, em 2021, cessarão os efeitos das majorações oriundas das contínuas excepcionalidades, e as alíquotas do imposto cujo nome oficial carrega 21 palavras no estado do Rio Grande do Sul voltarão ao seus valores originais, de 2015.
A segunda: em janeiro deste ano, precisamente no dia 15, entrou em vigor o Decreto 65.255, de 15 de outubro de 2020, assinado pelo governador do estado de São Paulo, João Doria (PSDB). No decreto, um aumento da alíquota de ICMS para o setor de bares, restaurantes e similares da ordem de 15,31% – a alíquota era de 3,2% e passou para 3,69%. O mesmo decreto, em seu último parágrafo, estabeleceu seus efeitos pelo prazo de 24 meses. Fixos. Mas, em 15 de setembro, o mesmo governador anunciou o retorno da alíquota para 3,2% a partir de 1.º de janeiro de 2022.
Estes são os fatos. Estes são os acontecimentos. Dependendo de seus objetivos e interesses, o leitor pode acrescentar pequenas nuances ou sutilezas legais em cada um dos parágrafos acima. Mas nada que altere a essência das propostas ou decretos. Assim como o objetivo das pequenas transgressões às regras de isolamento foi a preservação, a todo custo sanitário (regras deles), de suas estéticas e imagens, os objetivos dos acontecimentos acima narrados sempre foi o de colocar mais dinheiro nas mãos dos governos de plantão. Ponto.
Entretanto, ainda devotos das imagens e suas projeções, os mandatários dos palácios Piratini e Bandeirantes anunciaram, respectivamente, uma proposta orçamentária para 2022 com redução de impostos, e a redução, a partir de 1.º de janeiro vindouro, das alíquotas para o setor de bares e restaurantes de São Paulo. Reduções de ICMS!
A palavrinha da moda que explica a série de fotos, representações e declarações chama-se narrativa. E a dona narrativa, para ficar em outra palavrinha da moda, é a ardilosa mãe das fake news, as informações noticiosas que não representam a realidade, mas que são divulgadas como se fossem.
Os governadores gaúcho e paulista, pré-candidatos à Presidência da República, estão divulgando duas grandes fake news: não é verdade que estejam encaminhando propostas com reduções de ICMS ou diminuindo alíquotas. São só narrativas. Estão apenas retomando a cobrança aos patamares anteriores, antes dos aumentos que eles mesmos instituíram ou prorrogaram.
O Partido da Social-Democracia Brasileira, para estranhamento e risco do Brasil, parece ganhar um padrão.
Mateus Bandeira, conselheiro de administração e consultor de empresas, foi CEO da Falconi, presidente do Banrisul e secretário de Planejamento do Rio Grande do Sul.
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