Artigo, Alexandre Garcia, Gazeta do Povo - Medo fantasiado

Assisti, aos 23 anos, em 1964, à derrubada do presidente João Goulart. A principal justificativa era de um necessário contragolpe preventivo, para evitar que Goulart e a esquerda instalassem uma ditadura comunista. Quase 60 anos depois, sinto a volta da narrativa do contragolpe preventivo, agora a pretexto de evitar que (Jair) Bolsonaro e a direita instalassem uma ditadura fascista. Desta vez não foram as armas dos fardados, mas as canetas dos togados. Nem as Forças Armadas nem o Judiciário têm mandato popular para tomar decisões de tão grande importância, supostamente como protetoras do regime democrático. Em 1964 e agora, houve prisões genéricas “preventivas”.


Os dois acontecimentos se parecem; apenas com sinais diferentes e com a mesma falta de legitimidade − que só é conferida pelo voto popular, origem do poder. Nem militares nem juízes têm o voto do mandato popular. Em ambos os casos, o Congresso Nacional ficou encolhido. Em 1964 elegeu o general Castello Branco presidente. Agora foi um espectador passivo, mesmo quando foi esmagado o artigo 53, da inviolabilidade do mandato. Pode-se dizer que deputados e senadores, intimidados pela quantidade de processos que respondem, não estiveram à altura da procuração que lhes foi outorgada pelo voto de milhões de brasileiros. Ou seja, também nesse último contragolpe o Poder Legislativo, o primeiro na ordem dos três poderes como mostra a Constituição, esquivou-se para um lugar secundário.


As Forças Armadas saem dos últimos acontecimentos sem a pecha do golpismo de 1964, que ainda vinha sendo usada. Impossível chamar agora de golpista instituição que se recusou a atender o apelo de uma massa por intervenção militar. Agora militares estão sendo criticados por terem se mantido na legalidade. Já o Supremo herdou a pecha. Tem sido criticado por não seguir a Constituição nem o devido processo legal. Adotou a novidade do ativismo a pretexto de evitar suposto golpe fascista. Suponho que já sinta que está numa camisa de 11 varas para encontrar uma saída que signifique o “retorno aos quadros constitucionais vigentes”, que foi a palavra de ordem no contragolpe de Lott no 11 de novembro de 1955, que garantiu Juscelino presidente, com Goulart de vice.


Golpes e contragolpes sempre provocam dores. Ontem em Brasília saiu mais uma vez o bloco do Pacotão − alusão ao Pacote de Abril editado por Geisel, criando o senador biônico. Em 1978, o Pacotão debochava de dois generais, o presidente e seu sucessor, chefe do SNI, fazendo trocadilho com o Aiatolá do Irã: Geisel, você nos atolou/ Figueiredo, você também vai nos “atolá”. Ninguém foi preso ao fim do desfile. Hoje, há centenas de homens e mulheres desesperados em presídios, pelo 8 de janeiro, e o povo ainda não sabe quem realmente entrou nos palácios e quem realmente quebrou o patrimônio de todos. Muito menos se sabe como entraram e quais foram as causas remotas do que desbordou na invasão das sedes dos Três Poderes. É a grande oportunidade de o Poder Legislativo renovado por eleição mostrar que faz jus à representação popular. É nos plenários políticos e não apenas na polícia, que deve ser investigado o grave acontecimento político do 8 de janeiro. Está nas mãos de deputados e senadores demonstrar que são o primeiro dos poderes numa democracia. E não o último num medo fantasiado de democracia. 


    

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