Depoimento de presa política da Colmeia

 Na hora da comida uma nova provocação: “Olhem vocês aí e o Bolsonaro está lá nos Estados Unidos”. Queriam nos humilhar e desanimar a qualquer preço, mas ficamos caladinhas e recebemos aquela comida que nem merece ser chamada como tal. É uma ração com casca de verduras e, então, eu separava o arroz e feijão para comer. A linguiça também não dava para comer. À noite não conseguia dormir e só pensava no meu filho e meu peito queimava. 


Dentro da cela estávamos só com a roupa do corpo e recebemos um kit presa com absorventes, papel higiênico, pasta e escova de dentes.  Não demorou muito, nos levaram para outra ala, toda queimada devido a uma rebelião das presidiárias. Era um cenário horrível, sem lâmpadas, paredes chamuscadas e descascando. As camas eram triliches e as senhorinhas não conseguiam subir, foi um problema. 


Tivemos contato com a diretora do Colmeia dentro da cela, ela veio nos explicar todos os procedimentos. Nos disse que não éramos criminosas, mas que ali dentro seríamos tratadas como tal. Disse que não podia fazer nada por nós e demostrou ser muito humana, derramou lágrimas e nos pediu: “Pelo amor de Deus não errem por coisas bestas”. A diretora era muito diferente das carcereiras que viviam nos maltratando e falavam conosco aos gritos, nos mandavam colocar as mãos para trás e para não olharmos para elas. As carcereiras ameaçavam nos colocar em solitárias e diziam que no terceiro dia tentaríamos suicídio. Quando elas abriam a porta, se tinha alguém no banheiro era problema, porque tinha que apresentar-se rapidamente. Imagina a situação! Ficamos nesta ala com 20 quartos e um corredor gigante, dez quartos de um lado e dez quartos no outro. Era como se fosse um grande apartamento, porque o banheiro com três vasos e dois chuveiros ficava do lado de fora das celas, junto a um local vazio usado para fazer a conferência de todas as 137 presas duas vezes ao dia. Junto a essa sala vazia tinha ainda o tanque. Preste atenção: éramos 137 mulheres compartilhando um tanque, dois chuveiros com água fria e três vasos sanitários. 


Depois do banho frio, nós enxugávamos o corpo com única roupa que tínhamos no cárcere. Não tinha toalhas, que chegou só dias depois, ofertadas por uma igreja de Brasília junto com calcinhas e sutiãs. O cheiro ruim exalava dos corpos e das roupas, pois só tínhamos as nossas roupas sujas para nos secar e, depois, as vestíamos molhadas. Eu cheguei a tomar banho e ficar enrolada no cobertor, mas fui xingada e tive que vestir a roupa molhada. É triste dizer isso, mas tinha gente fedendo a carniça. 


“Se virem com o que tem! Pode chegar algum homem aqui e pegar alguém pelada”, diziam elas, nos proibindo de lavar e secar a única roupa que tínhamos. Era incomum ter homens no Colmeia, mas numa noite recebemos policiais penais, logo depois da janta. Nos entregaram bíblias que sobraram após a distribuição no Papuda. Eu vi lágrimas nos olhos deles e um disse se sentir “um nada” diante da gente, mulheres muito corajosas. 


Aos poucos foram chegando kits de roupas que os familiares das presas compravam e enviaram pelos advogados e eu fui ajudada por uma moça boazinha que cedeu algumas peças para mim. Só então pude tirar aquela roupa rasgada. Era uma querida que distribuía aquilo que não lhe faria falta. Talvez por estar nervosa a minha menstruação veio forte e consegui me socorrer com absorventes recebidos pelas senhoras idosas. Uma ajudava a outra.




TENHO TRANSTORNO OBSESSIVO COMPULSIVO - TOC


Em todo esse tempo, quando apelava para nos tirarem da prisão, a resposta era sempre a mesma: “Não posso fazer nada, quem manda é o ministro Alexandre de Moraes.” Enquanto isso, estávamos no cárcere comendo alimentos com bichos, o café da manhã era um achocolatado e dois pães pequenos, sendo que eram entregues sem qualquer higiene e vinha todo amassado. Eu não conseguia comer, só tomava o achocolatado. A janta e o almoço vinham em marmitex, mas era uma comida muito ruim, azeda e/ou com bichos, como falei antes. Junto vinha um suco e uma fruta, em geral, estragada. Guardávamos para mostrar para as carcereiras, na esperança de que a comida melhorasse. Ilusão. Quando começaram a entregar pacotes de biscoitos eu só comia isso. Não conseguia comer aquela carne que parecia uma ração molhada.


Sofri muito lá dentro também por ter TOC, mania de limpeza, e a experiência na cela foi horrível. Já falei do cheiro, da comida e tinha outra coisa que me incomodava: o uso da torneira, única fonte de água para beber que tínhamos. Eu tinha nojo daquela torneira porque as pessoas estavam gripadas e, infelizmente, não têm bom senso e ficavam assoando o nariz bem no local em que a gente beberia logo em seguida. Tentava tomar água, mas não conseguia. Então combinei comigo mesma que tomaria só quando a situação ficasse difícil, ou seja, tomava água a cada três dias. E, ainda assim, só depois de desinfetar a torneira muito bem com sabão em pó e água sanitária. Tomava água com as minhas mãos, completamente limpas, e comia o que era possível ingerir com a mão. As outras detentas diziam que eu iria desidratar. O pior é que eu nem conseguia ir ao banheiro por conta de beber pouco. Mas eu não conseguia: era a única torneira para todas as detentas, usada para escovar os dentes, lavar rostos es mãos, ali assoavam o nariz, enfim, ela servia para tudo. E eu sentia nojo. 


Soube que um dos vasos sanitários entupiu e uma das patriotas teve que forrar a mão com saco plástico e fazer pressão. Por sorte não vi isso, só me contaram, pois foi antes de chegar nessa ala. Que situação! O banheiro era imundo, tinha um fedor de esgoto. A maior parte do tempo que fiquei no Colmeia foi deitada na cama, não ficava andando, isso porque era gente demais dentro daquela ala, com hábitos diferentes e eu estava sentindo muita dificuldade para me adaptar.


Era muito triste conhecer a realidade das patriotas presas. Tinha uma mulher com câncer, uma outra era esquizofrênica e ela batia a cabeça na parede. Muitas estavam sem as suas medicações continuadas e quando falávamos sobre os medicamentos continuados para as carcereiras, elas diziam: “O que vocês estavam fazendo na manifestação, se você é diabética ou tem outra doença?”. Era muito desumano, até porque os remédios estavam nas bolsas delas, mas percebemos que os procedimentos dos presídios são todos muito demorados.


Na verdade, era pior que desumano. Duas vezes por dia tinha o “Confere” das presas. Todas nós tínhamos que assumir a postura que a carcereira queria e se uma de nós tivesse deitada e desfalecida, tínhamos que tirá-la da cama e carregá-la para a vistoria. Arrastávamos a doente para o Confere. Elas não querem saber nada sobre você, estão ali só para cumprir o protocolo, mas não sei se no protocolo estão estabelecidas as inúmeras agressões verbais que sofremos, nem a pressão psicológica. Vivemos em tortura dentro do Colmeia.


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