Supremo versus Supremo

Supremo versus Supremo

Ao rejeitar a tese do marco temporal, a Corte julgou contra a Constituição e a própria jurisprudência, gerando insegurança jurídica para todos os cidadãos, inclusive os indígenas


O Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Trata-se de um enorme retrocesso, tanto do ponto de vista institucional – pois é mais um sinal de que a Corte por vezes se deixa inebriar pelas paixões políticas – como prático. O futuro vai mostrar quão extenso será o dano causado por uma decisão que, ao que parece, foi pautada pela pressão de setores da sociedade civil, não pela letra da Constituição que os ministros do STF têm como dever fundamental resguardar.


Até quinta-feira passada, quando o julgamento iniciado em 2021 foi concluído, prevalecia o entendimento segundo o qual os povos indígenas só poderiam reivindicar a demarcação das terras que ocupavam no dia 5 de outubro de 1988, data em que foi promulgada a Constituição. A fixação desse marco temporal em 2009, quando o STF se debruçou sobre o caso da reserva Raposa Serra do Sol, nada tinha de aberrante ou inconstitucional, como apregoam seus opositores. Anômalo seria o contrário, isto é, tornar a demarcação de terras indígenas objeto de disputas intermináveis no País. Pois foi exatamente o que o Supremo fez.


O que mudou no Brasil nos últimos 14 anos, no que concerne à questão indígena, para que o STF derrubasse uma decisão tomada pela própria Corte há tão pouco tempo, em termos de jurisprudência? Nada, a não ser a nova composição da Corte e o aumento da pressão de setores da sociedade pela revisão da tese do marco temporal. Tanto uma coisa como outra, porém, não deveriam ter influência nas decisões da mais alta instância do Poder Judiciário. É prerrogativa do STF exercer um papel contramajoritário justamente para fazer valer a supremacia da Constituição e, assim, trazer segurança jurídica ao País, sem a qual não há paz social.


A decisão de 2009, fixando a tese do marco temporal, respeitava a intenção dos constituintes originários quando escreveram o art. 231 da Constituição, que diz: “São reconhecidos aos índios (...) os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Como este jornal enfatizou em junho passado, o texto constitucional é cristalino: os indígenas não têm direitos sobre terras que, eventualmente, venham a ocupar, mas sim sobre as terras que “tradicionalmente ocupam.

Não é nada sutil a diferença entre uma coisa e outra (ver A legitimidade do marco temporal, 11/6/2023).


A validade do marco temporal era a posição do STF até pouquíssimos dias atrás, coadunada com o que determina a Constituição. A Lei Maior não ignorou a necessidade de proteger os cidadãos indígenas. Ao contrário, definiu muito bem os seus direitos e fixou os limites para que possam exercê-los, assim como os de todo e qualquer cidadão brasileiro. Mas, a pretexto de resguardar os direitos dos indígenas, o STF caminhou na direção oposta, vale dizer, reduziu-os à condição de objetos de disputas políticas e jurídicas que, ao que tudo indica, não terão fim.


Está no Senado um projeto de lei já aprovado pela Câmara dos Deputados que fixa o marco temporal como base para os processos de demarcação de terras indígenas. Por óbvio, um projeto de lei não se sobrepõe à Constituição, mas nada impede que o Congresso, cuja competência para legislar não é abalada pela jurisprudência do STF, dedique-se a analisar uma emenda à Constituição que fixe expressamente a data de 5 de outubro de 1988 como marco para a reivindicação de direitos sobre terras pelos indígenas.


Outra questão que decerto fará com que o debate sobre o marco temporal ainda se prolongue no tempo é a possível indenização dos indivíduos que ocuparam de boa-fé os territórios considerados áreas de demarcação. A indenização por eventuais benfeitorias já é prevista em lei, mas o ministro Alexandre de Moraes propôs que aqueles proprietários também devem ser indenizados pela ocupação da chamada “terra nua”.


Ou seja, o STF até pode ter mirado na pacificação dos conflitos de terra, mas acertou em cheio na confusão.


Nenhum comentário:

Postar um comentário