A prisão do homem que promove ‘laço de amizade’ entre o Brasil e a China

Conheça Marcos Zheng, detido no sábado, 11, sob suspeita de liderar quadrilha que furtou 15 mil testes de coronavírus e 2 milhões de equipamentos de proteção individual; siga o caminho da carga supostamente roubada até a Associação Shangai no Brasil

“Trata-se de um cidadão do bem e contribuiu de forma significativa para estabelecer o laço de amizade entre Brasil e China”. A declaração, em papel timbrado, é da Associação Chinesa do Brasil sobre seu vice-presidente, Zheng Xiao Yun, ou Marcos Zheng, que está preso sob a suspeita de liderar uma quadrilha flagrada e presa com 15 mil testes de coronavírus e dois milhões de equipamentos de prevenção roubados.

Ele já foi sequestrado, viu uma secretária morrer a tiros, e também se livrou de uma condenação por supostamente trazer relógios falsificados para o Brasil. De outro lado, intermediou encontros de banqueiros e empresários chineses no Palácio dos Bandeirantes, sede do governo Paulista, e também com outros políticos. Diz ele ter feito a ligação entre a Saúde do governo João Doria (PSDB) com hospitais e médicos de Wuhan – cidade chinesa onde a pandemia se originou – para troca de informações sobre a covid-19.

Seus guarda-costas são um policial militar e um sargento da reserva do Exército Brasileiro. Fortemente armados. Com eles, foram encontrados um fuzil e uma carabina ponto quarenta. Ele diz que precisa de proteção, já que experimentou cinco dias em um cativeiro, foi roubado, e ainda escapou de uma emboscada a tiros.

Os milhares de testes, cujo lote bate com o de uma carga surrupiada no Aeroporto de Guarulhos, estavam em seu imóvel, onde também funciona a Associação de Xangai no Brasil. Presidida por ele, a entidade é seu cartão de visitas nos encontros que já promoveu entre empresários e políticos.

Alega Zheng nunca ter lidado com material de higiene, muito menos sem origem, e que seu negócio é com equipamentos de som. E, que por meio da entidade, já promoveu a venda de produtos brasileiros pelo governo Chinês, e também a remessa de itens de seu país de origem para ‘venda e doação no Brasil’ – tudo com nota fiscal.

A versão, dada à Polícia Civil, não convenceu, e ele foi preso em flagrante. Um dia depois, também não convenceu o Ministério Público e a Justiça, que decretou sua prisão por tempo indeterminado.

A juíza que decretou a prisão preventiva vê ‘audácia’ na atuação de Zheng e de outros 13 presos neste sábado, com a venda de equipamentos roubados, que abasteceriam hospitais em um país à beira da superlotação em seu sistema de Saúde, com 22.169 infectados pela pandemia que já matou 1.223 pessoas até este domingo, 13.

O Estado obteve acesso exclusivo à investigação que levou à cadeia o grupo supostamente liderado por Zheng, desde o sumiço dos testes rápidos até a prisão sem prazo para saída. Comparando os preço pago pela importadora, e o pedido inicial dos investigados pela carga, o lucro seria de 5.000% para o crime.

O roubo dos testes
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No dia 2, um voo da Qatar Airways chegou ao Aeroporto Internacional de Guarulhos, com 57 pacotes de testes rápidos de coronavírus importados da China por uma empresa contratada por hospitais para fornecer os itens.

Tudo ficou, como usual, armazenado no terminal de Cargas Internacionais, e os volumes foram retirados para o depósito de uma transportadora no bairro de Santana, na Zona Norte da Capital, quatro dias depois.

No dia 8, quando a carga passou por uma revisão, os funcionários descobriram que 15 caixas de papelão haviam sido esvaziadas, e encaixadas na parte externa de outras 15, com os testes – muito provavelmente, para encobrir o desvio.

Para cada caixa, mil testes de coronavírus eram armazenados. Ou seja, 15 mil sumiram. A empresa estipula que o valor do material surripiado seja de R$ 80 mil.

Já no início das investigações, a Polícia Civil recebeu a informação de que os testes não só já teriam caído no mercado negro, como também teria sido oferecida sua venda à própria importadora que teve sua carga roubada.

Titular da 3ª Delegacia de Atendimento ao Turista, Luís Alberto Guerra, então, recebeu informações da inteligência da Polícia de que a carga possivelmente havia sido transferida para o bairro do Ipiranga.

Passando-se por um empresário nordestino, negociou com os criminosos. A pedida deles era de R$ 4 milhões. O valor acertado acabou ficando em R$ 3 milhões.

A primeira reunião, segundo ele, foi marcada em um bar na Rua Almirante Lobo, no Ipiranga, onde se encontrou com Antonio Ricardo dos Santos Lima, com quem negociou os testes. Ele foi acompanhado do delegado Rodrigo Baracat.

Ao chegarem ao ponto de encontro, os delegados dizem ter visto, ainda, outros cinco homens que se apresentaram como intermediários. Dois deles ‘indicaram o local onde estavam os kit’s’ e teriam os pedido para que acompanhassem até lá. “Ato contínuo, o condutor foi até o interior do prédio, sendo recebido por três seguranças, visualmente armados”.

Guerra afirma que, em ‘seguida subiu dois lances de escada e foi até uma ante sala, onde foram recebidos’ dois outros intermediários.

“Na sala posterior, fechada estavam as pessoas de Marcos Zheng e Fu Zhihong [empresário], tendo visualizado as caixas com os possíveis testes em poder de Fu, o qual inclusive lhe questionou se estava tudo certo com a negociação, perguntando se já iria levar o dinheiro, sendo que Zheng estava do outro lado da sala, em uma mesa falando ao telefone, nada participando da negociação”, narra, em depoimento.

Os delegados dizem ter sido orientados a trazer, então, o dinheiro, e que um ‘dos criminosos informou que o número, na Rua Cipriano Barata – Ipiranga – não era aparente pois foi retirado para dificultar a localização’.

Ao chegarem, os delegados ingressaram no interior da casa, onde ‘havia três pessoas claramente para fazer a contenção e segurança da entrada’, duas delas armadas. Foi então quando os policiais se identificaram e deram voz de prisão.

“Durante a abordagem um deles se identificou como sargento do Exército e apesar de recalcitrante, a testemunha Rodrigo conseguiu desarmá-la, colocando-o ao solo, dominando-o, enquanto que os policiais que vinham na cobertura, com uma viatura caracterizada da Polícia Civil, adentraram junto com a testemunha tentavam dominar o outro segurança que dizia ser policial e tentavam retirar a sua arma, sendo certo que este segurança começou a gritar e falar alto, impedindo para que fosse feita a revista, fazendo com que a testemunha Rodrigo fosse até o apoio, para poder conter aquele segurança que resistia a ser revistado na prisão”, narra Baracat.

Segundo o delegado, o homem que se identificou como PM ‘falava alto e chegava a gritar, causando alvoroço, nitidamente para impedir o ingresso rápido dos policiais, seja para alguém fugir ou descartar algum produto ilícito, visto que esta casa era contígua e com duas portas que dava acesso à lateral, que até então não se sabia que fazia parte do imóvel’.

De fato, um dos seguranças é policial militar. Cleber Marcelino da Silva, cabo afastado desde setembro de 2019 – a Secretaria de Segurança Pública não revela o motivo – alugou aquela casa da Câmara de Comércio China Brasil há menos de um mês, para acomodar máscaras de proteção.

Diz ele que estava sentado em frente às caixas quando chegaram os agentes gritando: “Polícia, Polícia!”. Eles mandaram-no deitar ao lado do portão. Afirma ele ter assumido que era dono das máscaras aos policias. Mas, nega saber que, além dos EPIs, havia lá testes de coronavírus.

A Corregedoria da PM abriu uma investigação sobre Silva, que está preso no Romão Gomes, destinado à detenção de policiais.

Já o sargento é Paulo Sérgio Perniciotti, do Exército. Ele alega ser motorista de Zheng, mas que Fu é o locador de parte do imóvel, e seu chefe só aparece lá para comandar a Associação de Shangai. “Acrescenta, ao ser indagado, que o senhor Fu possui liberdade em todo o imóvel e soube apenas hoje que este autorizou a guarda da mercadoria apreendida”, consta, na conclusão de seu depoimento à Polícia.

Fuzil, pistolas, machado, dinheiro…
Quando invadiram o local, após render os seguranças, os policiais encontraram um arsenal de armas de grosso calibre. Em nome do PM e do sargento, duas pistolas de uso permitido a eles. Com Zheng, que estava no local, também uma pistola e 34 cartuchos, de uso permitido.

Já com outro segurança, foram achadas uma calibre 12, e um fuzil ponto quarenta. Somados, foram encontrados 90 cartuchos de munições para as armas.

Além disso, a Polícia também confiscou um machado e uma faca tática, R$ 25 mil em dinheiro vivo, US$ 800, e cinco yuans. Lá, também estavam os dois milhões de equipamentos de prevenção ao coronavírus, como máscaras, luvas e macacões, e também as 15 caixas de testes de coronavírus.

“O lote apreendido confere com aquele que foi roubado no Aeroporto de Guarulhos”, diria, mais tarde, naquele mesmo dia, o delegado Oswaldo Nico, do Departamento de Operações Estratégicas (Dope), ao Estado.

Zheng disse, em depoimento, ter motivos para usar armas, ‘porque já foi vítima de sequestro pertencendo por cinco dias no cativeiro e também vítima de roubos, e, inclusive os ladrões’.

Foto: Polícia Civil
Segundo apurou o Estado, além de um sequestro em razão da cobrança de dívidas, houve outro atentado. Dois chineses, um deles seu ex-sócio, respondem por ação de homicídio. Segundo a denúncia, eles teriam planejado a morte da esposa de Zheng, mas acabaram matando outra mulher por engano. O empresário conseguiu escapar.

O anfitrião
 Na reunião com o ex-governador Alckmin, Zheng é o primeiro à esquerda.

No local, estava Marcos Zheng. Ele teria se apresentado aos policiais como presidente da Associação Shangai no Brasil. Por meio da associação, já intermediou relações empresariais e políticas em São Paulo.

Em 2017, chegou a ser recebido pelo então governador Geraldo Alckmin (PSDB) no Palácio dos Bandeirantes, ao lado do presidente do Bank of China Brasil, Zhang Guanghua. Na ocasião, discutiram o apoio do banco para atrair investimentos a São Paulo, além de oportunidades de negócios no Estado.

“Queremos apoiar o Estado de São Paulo e estreitar os laços entre nossos povos em todos os âmbitos”, disse Zheng, à época, em evento que foi registrado somente pela assessoria do Palácio dos Bandeirantes, e até hoje permanece registrado no site do governo estadual.

Zheng também é vice-presidente da Associação Chinesa do Brasil, entidade fundada nos anos 1980, e que diz ser a ‘maior associação da comunidade chinesa no Brasil, representando também mais de 60 associações chinesas de diversas províncias e municípios’.

“Trata-se de um cidadão do bem e contribuiu de forma significativa para estabelecer o laço de amizade entre Brasil e China”, o atestado da Associação foi entregue pela defesa de Zheng à Justiça.
À altura de seus encontros com políticos e empresários, Zheng já tinha pendências com a Justiça. Ele foi condenado pela Justiça Federal de São Paulo por supostamente tentar entrar com relógios falsificados no Brasil, junto de sua esposa, Catarina, em 2003. Em razão da prescrição, o processo foi extinto pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região. É que o crime tem pena de um ano, e, entre a denúncia, em fevereiro 2005, e a sentença, em 2009, passaram-se pouco mais de quatro anos, tempo de prescrição.

Em seu depoimento, o empresário disse residir há 25 anos no Brasil e ‘desde sua chegada sempre desenvolveu e intermediou a relação entre o Brasil e a China’. “Que, inclusive, sempre trouxe empresários chineses para realizar negócios neste país, bem como viajou com empresários brasileiros visando estabelecer relações comerciais com aquele país”.
Ainda ressaltou que em momento ‘algum participou de qualquer negociação envolvendo máscaras ou testes, nem direta, nem indiretamente, e que nas últimas semanas a associação tem se dedicado em colaborar com as autoridades brasileiras, já que contatou médicos chineses que combateram o covid, para que pudessem auxiliar o poder publico do Brasil’.

“Que, inclusive menciona que esteve por duas vezes na secretaria de Saúde de São Paulo, aonde estavam presentes secretários e presidentes de hospitais e quando o interrogando fez a conexão com os hospitais e médicos de Wuhan justamente para que houvessem troca de informações”, diz.
Em seu depoimento, ainda completa: “Auxiliou com a associação que preside a compra pelo governo chinês de produtos brasileiros e igualmente possuía projeto de remessa de produtos chineses para venda e doação no Brasil”. Procurados, o governo estadual e o ex-governador Geraldo Alckmin, até o momento, não comentaram.

Relatou também que, por isso, virou presidente da entidade, que funciona no seu imóvel comercial, agora locado ao seu amigo, Fu.

O amigo Fu
Zheng afirma desconhecer ‘completamente os negócios realizados por Fu, mas, em razão das suas funções perante a associação de uma a duas vezes comparecia ao imóvel e pode perceber que Fu estava comercializando produtos de higiene, mas, tudo de forma regular e com nota, pelo que ficou sabendo’.

“Informa que na data do dia 11 [data da prisão] compareceu ao escritório para resolver alguns assuntos da sua empresa e da associação quando Fu lhe disse que conhecidos de ambos pediram ao mesmo para guardar algumas coisas no imóvel, afirmando o interrogando que não lhe foi informado nem o que seria”, diz o seu termo de depoimento à Polícia.
Segundo Zheng, ‘quando estava ao telefone adentrou em sua sala, o delegado de polícia, que se dirigiu a Fu que ali se encontrava do outro lado da sala, não podendo escutar plenamente o teor do diálogo”. “Depois vários policiais entraram em seu imóvel e viu a apreensão de máscaras e de caixas, cujo conteúdo desconhecia”.

Depoimento de Fu
Segundo ele, em ‘momento algum participou de qualquer negociação envolvendo máscaras ou testes, nem direta, nem indiretamente, e que nas últimas semanas a associação tem se dedicado em colaborar com as autoridades brasileiras’.

O amigo citado é Fu Zihong, que alega ter somente levado as máscaras até o local, segundo ele, de procedência brasileira. Fu diz que o policial Marcelino é seu procurador na empresa, e que tudo tem documentação. Seu termo de depoimento sequer toca no assunto dos testes de coronavírus.
Respeitabilíssimo

Marcos Zheng, seu zelador Zhang Ruifeng e seu segurança, o sargento Paulo Sérgio Perniciotti, contrataram o mesmo advogado. Daniel Bialski, criminalista renomado, já defendeu até réus da Operação Lava Jato. Em São Paulo, o mais conhecido é Paulo Vieira de Souza, apontado como suposto operador de propinas do PSDB, que foi defendido até meados de 2018 por Bialski.

Nos autos, o advogado anexou fotos de Zheng em eventos do governo estadual, e até mesmo com cartolas do futebol. Sustentou que ‘é empresário respeitabilíssimo, sendo um dos maiores interlocutores das relações comerciais Brasil-China, conforme evidenciam as fotografias em grandes reuniões realizadas com autoridades brasileiras, inclusive, com o ex-governador Geraldo Alckimin agradecendo o intercâmbio de informações entre Brasil e China’.

“Implemente-se que o Suplicante atua em ramo de comercio difuso, sem qualquer relação com os produtos apreendidos, bem como jamais se envolveu com mercadorias sem origem, sendo que toda mercadoria que adquire é provida de nota ou guia de importação”, argumenta.
Sem data para sair

Acolhendo parecer do Ministério Público, a juíza Érika Fernandes Fortes impôs a prisão preventiva de Zheng e outros 13 investigados neste domingo, 12.

Segundo a magistrada, Zheng estava ‘acompanhado de seus seguranças pessoais armados e dadas as circunstâncias acima elencadas, sua efetiva participação na empreitada ainda há de ser melhor investigada’. “Todavia, tratando-se de pessoa que possui informações privilegiadas, especialmente frente ao seu contato direto com alto escalão do governo estadual e empresas chinesas responsáveis pela negociação dos testes para exame do Covid 19, entendo que sua custódia neste momento é necessária”.

Segundo a magistrada, Zheng ‘é responsável por diversas negociações e intermediações de negócios entre a Secretaria Estadual de São Paulo, Governo Estadual, e a China, incluindo a conexão entre São Paulo e empresas de Wuhan, cidade chinesa onde o Corona vírus teve início’.

“Também estavam no local e foram presos empresários do ramo de equipamentos hospitalares e todos mencionaram que estavam ali exatamente para negociarem com o Sr. Fu mercadorias para o combate ao corona vírus, produtos estes que, segundo eles mesmos, “estão valendo mais que ouro”, anota a juíza, ao se referir a Fu Zhihong.

Com investigados presos, o Ministério Público tem 15 dias para oferecer uma denúncia, se entender que é o caso.

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