A próxima greve dos caminhoneiros
A insanidade do frete tabelado
Em “O Idiota”, Dostoievsky conta as agruras do Príncipe
Mishkin, o governante imbuído de boas intenções e que – a despeito de quere
fazer o bem – acabava prejudicando a todos que queria ajudar. Se Dostoievsky
tivesse nascido no Brasil, talvez tivesse optado pela crônica regulatória, e o
mundo teria perdido um romancista.
Em maio deste ano, o país acompanhou – num misto de
choque e fascinação – um movimento de paralisação dos caminhoneiros que, em
pouco mais de uma semana, criou a maior crise de desabastecimento em décadas.
Como parte de um pacote de ‘compensações1, o governo aprovou uma tabela de preços
mínimos para o frete rodoviário.
Mais tarde, o rumor de que uma nova greve estaria a
caminho aparentemente impulsionou a Agência Nacional de Transportes Terrestres
(ANTT) a mudar uma vez mais as regras do jogo (que em tese deveria obedecer à
lei de oferta e demanda).
Além de aumentar o valor das multas aos transportadores e
embarcadores, a ANTT se colocou no papel de ‘líder de movimento’, passando a
multar o próprio caminhoneiro que ‘aceita’ um preço baixo pelo frete. A
concentração de absurdos nessa medida paliativa ilustra a magnitude do desafio
que aguarda o time capitaneado por Paulo Guedes.
Em primeiro lugar, uma breve discussão das raízes da
crise.
A combinação de um mandato de renovação de frota para
redução de poluentes com uma administração equivocada de uma política de
subsídio – o PSI – resultou em um aumento na frota de caminhões brutal, da
ordem de 6% ao ano, no período compreendido entre 2009 e 2014.
No ‘melhor’ (para quem?) ano do PSI, uma transportadora
podia financiar 100% do caminhão a fantásticos 2,5% ao ano. De 2009 até 2018, a
frota de caminhões cresceu a uma razão de quase quatro vezes a da economia como
um todo. Em 2014, como se sabe, o País entrou na maior recessão de sua história
e a demanda por frete derreteu. A combinação da demanda fraca com um claro
quadro de sobreoferta fez com que o frete esteja, em 2018, em patamar inferior
ao de 2010.
Quem mais sofre com a crise do frete? O caminhoneiro
autônomo. Do 1,2 milhão de caminhoneiros registrados junto à ANTT, quase 500
mil são autônomos. Estes tipicamente operam com equipamento velho (idade média
de 17 anos) e não tiveram acesso a crédito do BNDES para trocar de caminhão
durante os anos dourados do PSI.
Como a margem histórica do caminhoneiro autônomo gira em
torno de 5% da receita de frete, o autônomo típico hoje está pagando para
trabalhar. A tristeza é que a ‘ajuda’ do governo (via subsídios à expansão da
frota) é que o enterrou. Cheios de boas intenções, nossos formuladores de
política decretaram a sentença dos caminhoneiros autônomos no seu momento de
maior ‘generosidade’.
Agora, cá estamos: e o governo resolve atacar o problema
de excesso de capacidade com. tabelamento de preços! O remédio agravará a saúde
do paciente, que continuará sem entender a doença que o acomete. A tabela tem
diversos efeitos; alguns, particularmente perversos.
Começando pelo óbvio: a matriz de transportes brasileira
é extremamente dependente do modal rodoviário, e 65% das cargas transportadas
no País hoje dependem de caminhões. Quando uma intervenção regulatória altera o
preço do frete, grande parte dos preços na economia acaba afetados, assim é o
ônus que nossos pesados custos logísticos e nosso déficit de infraestrutura
impõem sobre a produtividade da economia. Neste contexto, é incrível que
estejamos tabelando o preço mais importante da nossa matriz logística.
Além disso, a linearização do frete por quilômetro rodado
– o princípio fundamental da tabela - é um critério extremamente falho. Existem
diversas razões pelas quais um frete de 1.000 km não custa duas vezes mais do
que um frete de 500 km. Fretes de maior distância tipicamente concorrem com
outros modais (em especial ferroviário e cabotagem). Além disso, fretes de
mesma distância em regiões distintas do país podem ter custos completamente
distintos: buracos na estrada, preços de combustível, altimetria, chuvas,
roubos de carga – todos esses fatores alteram o ‘preço certo’ de um determinado
frete.
Caso a tabela ‘pegue’, regiões mais distantes em que o
frete da tabela descola completamente do preço de equilíbrio de mercado (acima
de 400 km) e que hoje tem rotas dedicadas atendidas por pequenas
transportadoras e caminhoneiros autônomos (os supostos beneficiados pela greve)
vão ter produtos mais caros e devem passar a ser atendidas por empresas
integradas verticalmente, com frota própria. A partir de agora, a empresa que
fabrica margarina para você, consumidor, está pensando em comprar caminhões e
aprender a operar uma complexa mesa de frete. É um investimento desnecessário,
alocado a uma atividade que a empresa não domina, e que reduz a produtividade
da economia como um todo.
Por fim, a tabela deverá prejudicar também o caminhoneiro
autônomo: os maiores clientes agora compram caminhões, com um incentivo
ineficiente á integração vertical. Quando os caminhoneiros se derem conta das
verdadeiras causas de suas dificuldades, instrumentalizados uma vez mais pelas
transportadoras, talvez tenhamos mais uma grande greve: na continuação da
comédia dos erros, quem sabe o governo proíba os embarcadores de comprar caminhões?
Um cenário alternativo: a tabela continua a existir, mas
não ‘pega’. Mesmo que não fiscalizadas, as empresas passam a acumular passivos
potenciais (afinal, continuam sujeitas a multas pesadas), e acrescentamos mais
um item à lista dos famosos passivos “ocultos” que oneram nosso custo de
capital e tronam inglório o trabalho de nossos auditores. O incentivo à
formalidade no setor de transportes continua, e o Brasil permanece campeão de
custos logísticos.
Machado de Assis dizia que a primeira glória é a reparação
dos erros. Que a nova equipe econômica se cubra de glórias.
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