Artigo, Denis Lerrer Rosenfield - A Cacofonia da autoridade


       Um erro tornado comum entre nós consiste em identificar, senão em confundir, a ideia de democracia com processos eleitorais, como se ela a esses se reduzisse. Para além do exercício pleno da liberdade, dentre os quais a liberdade de ir e vir, a liberdade de pensamento e expressão, a liberdade de organização partidária e sindical, há questões de fundo de ordem institucional que dizem respeito à própria autoridade estatal.
      Um dos problemas com o qual se enfrenta o país concerne a quem governa, a quem decide em última instância. Há todo um desenho constitucional que estabelece a separação de Poderes, a partir do compartilhamento da autoridade, assim como de suas distintas prerrogativas e competências.
      Acontece que este belo desenhotermina por não ser efetivo, quando os Poderes, além de outros que procuram afirmar-se, não só não se entendem entre si, como abrem espaço a diferentes tipos de arbitrariedades. Não basta um texto, ao qual todos dizem prestar respeito, se esse mesmo torna-se incapaz de regrar as relações sociais, econômicas e políticas em proveito do bem coletivo.
      Formalmente, o país é organizado constitucionalmente por Três Poderes, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Contudo, quando observamos a realidade, constatamos que, materialmente, a organização efetiva é bem diferente, com mais outros Três Poderes se acrescentando aos iniciais, a saber, o Ministério Público, o Tribunal de Contas da União e a Polícia Federal. Como se não fosse suficiente, alguns destes Poderes são constituídos de micros poderes internos que se arrogam uma independência em relação às autoridades hierárquicas do mesmo.
      O Ministério Público aparece não somente como um Poder independente, como tem a pretensão de invadir o espaço de outros Poderes. A partir de uma hermenêutica criativa, cada promotor, por exemplo, passou a gozar de uma independência individual, como se essa fosse a expressão concreta de uma autonomia funcional. As portas ficam escancaradas para cada indivíduo interpretar a lei como bem entender.
      O caso das delações em cascata, absolutamente sem controle, é um exemplo de como uma máquina de denúncias veio a invadir a competência dos demais Poderes, lançando nomes inocentes ao opróbio público. Delações não acompanhadas de provas são ineptas, porém os vazamentos já se tornaram neste meio tempo uma condenação pública.
      As duas denúncias ineptas do ex-Procurador Geral Rodrigo Janot contra o Presidente da República lançaram o país em uma profunda crise, inviabilizando a Reforma da Previdência, condição sine qua non da tão necessária transformação do Brasil. No papel, tudo parecia muito bonito, pois respaldado na luta contra a corrupção; na verdade, o maior prejudicado foi o próprio país. Dentre os seus efeitos, destaque-se o fortalecimento dos privilégios de estamentos estatais que resistem a qualquer mudança.
      A Polícia Federal segue os passos do Ministério Público, tentando ganhar para si maior protagonismo, como se fosse um Poder independente. Também elaé composta por micro poderes que se concretizam na ação de delegados que prestam contas apenas a si mesmos. Por exemplo, prorrogam indefinidamente investigações e inquéritos como se isto fosse algo perfeitamente normal, colocando o investigado na posição de um culpado potencial que se vê sem defesa e desguarnecido. Novamente, a justificativa consiste na luta contra a corrupção a embelezar qualquer ação, em uma invasão constante dos direitos individuais e, conforme o caso, no desrespeito às prerrogativas de outros Poderes.
      O Tribunal de Contas da União, de órgão auxiliar do Poder Legislativo, está, na prática, tornando-se um Poder autônomo, ao qual os outros devem prestar contas. Nada contra a formação técnica de seus quadros, muito aprimorada nos últimos anos, sendo exemplar em seus pareceres, mas estamos diante de questões institucionais que não podem ser contornadas. Veja-se o imbróglio dos acordos de leniência quando diferentes Poderes da República se digladiam entre si sobre quem tem a competência final sobre a matéria, produzindo uma grande insegurança jurídica.
      O Poder Legislativo talvez seja o mais desmoralizado dos Poderes, por terem vários de seus membros contas a prestar à Justiça. Acontece que a opinião pública já não mais discrimina entre parlamentares honestos e desonestos, como se todos fossem iguais e pertencessem a uma mesma classe política corrupta. Pior do que o pior dos Poderes Legislativos é a ausência de Poder Legislativo.
      Assinale-se, ainda, que o próprio Legislativo é responsável de sua própria perda de poder. Incapaz de resolver os seus problemas internamente, recorre a todo momento ao Supremo para que esse decida sobre o que fazer em cada questão pontual que se apresenta. O STF é provocado sistematicamente por parlamentares e partidos que abdicam, assim, de suas prerrogativas, colocando-se na posição de uma servidão voluntária.
      O Supremo tem aproveitado o espaço que lhe tem sido ofertado, ocupando todas as brechas que se lhe oferecem. A lei que deveria ser o seu limite é passível de toda sorte de interpretação, vindo por produzir uma hermenêutica criativa, tendo como único suporte uma suposta luta pela regeneração nacional. Ministros brigam em público como se suas palavras fossem a expressão de uma interpretação sacrossanta. Não há sacralidade que aguente!
      Este Poder é, igualmente, constituído por onze poderes internos, cada um deles agindo conforme os seus próprios critérios. Como se não bastasse, ministros decidem monocraticamente sobre qualquer questão que estimam constitucional e, mesmo, ética, como se a eles coubesse decidir sobre questões de moralidade pública, independentemente de qualquer amparo constitucional.
      O resultado de tudo isto consiste em uma diluição da autoridade estatal. Uma verdadeira democracia não conseguirá sobreviver a tal balbúrdia política e constitucional.


Um comentário:

  1. O PATRIOTA BOLSONARO VÊM AÍ, E COM CERTEZA ACABARÁ COM ESSA ANARQUIA, DESEJADA, IMPLANTADA E USUFRUÍDA PELA ESQUERDA E PELOS CORRUPTOS EM GERAL.

    ResponderExcluir